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  • Policarpo Quaresma e o triste fim de Lima Barreto

    03/06/2014

     Vítima do infamante preconceito de cor e da paupérrima condição social até a morte, o mulato Lima Barreto perambulava bêbado pelos bares e botequins cariocas, abatido pela discriminação das elites intelectuais e da própria Academia Brasileira de Letras, que não lhe admitira, com desdém por uma obra antológica e imortalizada pelo tempo.

    Corajosamente avesso aos padrões estilísticos da época, numa linguagem coloquial e impregnada de expressões populares do “português brasileiro”, com menos de quarenta anos e uma fisionomia velha e desiludida, resultante do inveterado alcoolismo, o autor de “Triste fim de Policarpo Quaresma”, já havia produzido uma quinzena de livros notáveis, com o mesmo brilho e a portentosa imaginação dos europeus Honoré de Balzac, Stendhal e Anatole France, notadamente influentes no seu prosaísmo.

    Além de retratar, quase sempre, o drama de suas amarguras e ressentimentos íntimos, com fortes traços autobiográficos em ficções como a reportada e “Recordações do escrivão Isaias Caminha”, no formidável acervo, promovera uma velada e solidária campanha contra as barreiras sociais do racismo e o desprezo ao proletariado de pele negra e mestiça.

    Num Brasil ainda convalescente de preconceitos, uma luta praticamente solitária, em defesa do pobre e do miserável, encarnados em personagens suburbanos das feiras livres e dos trens lotados, então completamente esquecidos pelos poderes públicos, numa verdadeira crônica dos costumes e eventos do Rio antigo somente avaliada, tempos depois, como valoroso e indispensável documento de nossa realidade pós escravagista.

    Estereótipo do talento frustrado, os livros inovadores do funcionário público relapso e morador da vila Quilombo, certamente, desagradavam medalhões da romanceria acadêmica – o oficialismo cultural, onde pontificavam, entre outros, Machado, Raimundo Correia, Graça Aranha, Coelho Neto e Bilac, cultores da erudição lusitana e antípodas de sua vida escandalosa, irreverente e malfadada.

    Trafegando, portanto, na contramão do intelectualismo burguês tornou-se irremediavelmente marginalizado e de tanto se deparar com portas fechadas ao merecimento encontrou na bebedeira contumaz a terrível válvula de escape que, afinal lhe conduziria a lancinantes internamentos por alienação mental e a inevitáveis quedas, maltrapilho e malcheiroso, na sarjeta imunda, reduzido a mísero derrelito, até morrer no calabouço do vício, aos 41 anos.

    Esse o triste fim do extraordinariamente grande Afonso Henriques de Lima Barreto, somente não comparável ao de Quaresma do seu romance

    imortal, porque fora sepultado por numerosa multidão de humildes admiradores, sem ilustres sobrenomes, numa homenagem, pelo menos na morte, que nunca recebera em vida!


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