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  • 'A agonia de Cristo' e o crime do artista genial

    30/04/2014

     Considerado, ao longo dos séculos, como um dos grandes mestres da pintura sulamericana o equatoriano Miguel de Santiago foi tocado, em dado momento da vida, pelo ardente e obsessivo desejo de pintar a agonia de Cristo, durante seu calvário na cruz, segundo o relato bíblico.

    Muitas vezes pôs mãos à obra, intentando traçar a feição angustiada do “salvador”, sem que a imagem produzida lhe satisfizesse completamente, sobremaneira, a justificar, já no seu tempo, a reputação de exímio e genial artista.

    Infatigável, procurava, a todo custo e modo, a inspiração de fazê-la, irretocavelmente, até que um dia descobriu, entre seus discípulos, um apolíneo e formoso jovem, de pele branca e cabelos nazarenos, a que julgara o perfeito modelo da pretendida criação. Induziu-o, então, a trajar-se conforme as supostas vestes de Jesus, colocando-o na posição adequada ao seu visório, isto é, preso numa cruz vertical de madeira.

    No entanto, ao revés de exprimir qualquer tormento, o jovem, de índole paciente e blandiciosa, sorria ingênua e docemente, com o fito de agradar o respeitado, porém rabugento e irritadiço pintor, levando-o, assim, à conclusão de não servir o aluno solícito aos propósitos da imaginada tela, por mais que lhe sugerisse a necessária expressão de sofrimento facial.

    Irado e movido pela conhecida têmpera violenta, friamente, sem nenhuma cautela, traspassou com uma lança as costas do modelo, infelizmente, atado ao madeiro, de modo a provocar uma intensa dor no rosto juvenil, seguida de convulsões mortais.

    No doloroso instante da inopinada agressão o moribundo bradava e se retorcia inutilmente, porque diante de Miguel de Santiago não havia um ser humano a se debater morrendo, porém a representação viva da tremenda e imponderável elucubração artística!

    Somente quando terminou o quadro sem nada, conscientemente, perceber, sequer ouvir os gritos da cobaia e avaliar as conseqüências do ato desvairado e criminoso, desatou a vítima e, voltando a si, deu conta do horrendo crime praticado, certo de nada mais poder fazer para salvá-la.

    Desapareceu, então, do atelier, sem mais regressar até o fim dos seus dias, suportando o estigma do delito perpetrado por mero delírio de inspiração, mas, sobretudo, numa manifestação do temperamento impulsivo e incontrolável.

    Absolvido pela justiça de seu país, tornou-se marcado, triste e empobrecido, carregando na alma a reprovação social dos contemporâneos

    e da própria consciência que lhe martirizou até a morte, poucos anos depois, em fins do século XVI, com freqüentes e terríveis alucinações.


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