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  • Pecados literários veniais

    28/11/2014

     Quase todas as grandes obras da literatura, em diversos gêneros, como a prosa, o drama e poesia, sobremaneira as denominadas clássicas, são tão profundas e notáveis que continuam lidas e parodiadas milhares de anos após a criação, algumas com literal apropriação de suas máximas por outros livros e autores da modernidade.

    Quem não ouviu ou leu, muitas vezes sem menção à autoria, o propalado e universal aforismo de Shakespeare, um dos maiores dramaturgos de todos os tempos, “há muito mais coisas entre o céu e a terra do que pensa a nossa vã filosofia”, alusivo a dissimulados interesses numa relação aparentemente sincera?

    No mesmo diapasão, não era originariamente do brigadeiro Eduardo Gomes ou de seu “ghost writer” a advertência de que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”, uma expressão emblemática, retirada, com todas as letras, do romance futurista de Aldous Huxley e identificá-la não é tarefa difícil a qualquer leitor atento das páginas de “Admirável Mundo Novo”.

    Jean Paul Sartre, numa de suas peças frementes de paixão humana, põe na boca de certo personagem a delirante exclamação: “Mi alma es triste asta la muerte” – pronunciada, na verdade, segundo a narrativa bíblica, por Jesus, na agonia do Getsêmani, momentos antes da crucificação no calvário. E Eugene Ionesco, o príncipe dos romancistas do absurdo, escorrega na farsa “Rinocerante” ao copiar literalmente a definição da vida como um sonho, difundida pelo belo e precedente soneto de Calderon de La Barca.

    Também não é do erudito filósofo e imortal da A.B.L. Silva Melo o apotegma “o homem é a medida de todas as coisas” a que, sem a menor ressalva, alude o humanista, no denso estudo analítico da natureza humana, intitulado “O homem – sua vida, sua educação, sua felicidade”, eis que fora o filósofo grego Protágoras o seu verdadeiro autor.

    Aqui, em nosso meio, a sentença fatalista atribuída, nunca por ele próprio, ao grande José Américo, mestre das tiradas de efeito, segundo a qual “o que tem de ser tem muita força” não seria genuinamente do admirável estadista e precursor da literatura modernista, porém extraída de anônimo autor da velha e infalível sabedoria popular.

    Não obstante, tais repetições ou paráfrases, segundo os entendidos em psicologia anímica, não significam, propriamente, censurável plágio. É que escritores desse jaez jamais desceriam ao terreno da improbidade literária, porquanto apenas revelam pecados veniais que não chegam a

    macular o currículo de espíritos reconhecidamente consagrados, cometidos, conforme Eric Fromm, por meros equívocos do subconsciente do escritor excessivamente produtivo e prolífico, contra os quais, no entanto, deve o artista, acender todos os censores da autocrítica.


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