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  • O poeta Firmino Leite

    08/05/2015

     Firmino Leite, filho de família rica se formara doutor em medicina. No estudo aprendera muitas palavras novas, desconhecidas em casa e no lugar. E tomara gosto em saber das coisas nos seus detalhes e ligações pertinentes, ou que surgiam, aconteciam a-leatórias ou necessariamente: assim como a juven-tude acontece na primavera da vida, e o cidadão esperto é chamado raposa – para falar como ele gostava e fazia. 

    Tudo acontece, tudo nasce nos comentários eu-trapélicos sempre carregados de realidade. Insi-nuara-se acuradamente no ambiente mais visível e fraterno do meio: o chão, os matos, os habitantes bichos e pessoas – que ele os conhecia todos no seu porte, nos seus gestos mansos e arrepios, na sua superioridade e inferioridade pela força, pela agi-lidade, pelo estilo natural em cada um.
    Trabalhou árduo, duro na medicina, mas o atra-palhava mesmo, a curiosidade de saber algo mais, e nada alem foi, nada a ver com a sua profissão aprendida nas escolas. Assim, conhecia os paus pela casca, pelas folhas, os bichos pelo couro, passa-rinhos pelas penas e todos pelo canto, a voz: o esgrouviado ou buchudo, nanico ou galalau, a fala nas horas e desoras − suas vozes proféticas como da acauã e da mãe da lua.
    Naturalmente, por razões que tais, tornou-se o melhor intelectual da família. Dá para conferir na sua poesia, na sua prosa, deixadas em publicações várias, ecoando ainda hoje nos tabuleiros nativos. Intimamente sabia-se feito nas letras, mas, genero-samente desculpava-se. “Se eu possuo alguma virtude é a de não ter atropelado ou obstruído a ascensão dos meus semelhantes. Fiquei sempre à margem do caminho para deixar passar seu mérito.”
    Transcrevo a seguir, dois textos sobre a lingua-gem e a obra do escritor Guimarães Rosa, a pro-priedade das reflexões perfeitamente ajustadas ao escritor Firmino Leite.
    Os gerais e o sertão semiárido da Paraiba, sua gente: os costumes, a vida. Não é tarefa difícil demonstrá-lo na literatura dos escritores citados.
    O Professor Willi Bolle, um cientista da língua-gem nos diz: "Grande Sertão: dois universos pa-ralelos (...) é uma montagem em contraste. Com isso o autor se refere a dois universos de linguagem, dois mundos de fala. De um lado, o grande discurso, a grande eloqüência, a norma culta, do outro lado, as veredas, a fala humilde das pessoas que moram no sertão. As veredas são os cursos de água e, por extensão, as clareiras onde se estabelecem mais facilmente as moradias”. Ao mesmo tempo, a evo-cação de um conjunto de significados tão carac-terístico do ambiente do sertão impõe à obra um forte traço particular, do qual Guimarães Rosa não pretende escapar. Por isso, a fortuna crítica de Grande Sertão insiste em marcar o movimento ambivalente da narrativa, sempre oscilante entre o regional e o universal.”
    Antônio Cândido, que é um crítico, diz que o Grande Sertão “tem tudo para quem estiver a ler: a vegetação do sertão, a botânica (...) o historiador vai encontrar a marca do seu ofício, o botânico vai encontrar, o ecologista vai encontrar, o sociólogo vai encontrar, o filósofo vai encontrar. O Tom Jobim foi lá e ouviu música no Grande Sertão. Ele botou o livro no ouvido, igual concha do mar e ouviu música”.
    Tal acontece comigo: leio Firmino Leite e escuto emboladas, aboios, cheiro de moagem, musica va-riada, bater de chocalhos, espocar de foguetões, rugidos de trovões, claridades entonteantes de ralâmpagos, mugidos grunhidos – todas as vozes de lá do sertão do Piancó, de Patos de Espinharas. Doe e alegra-se o meu coração.
    Por último um retrato do mundo do sertanejo Firmino Leite na descrição do seu irmão de letras Câmara Cascudo:
    “Vivi no sertão típico agora desaparecido. A luz elétrica não aparecera. [...] O cminhão matou o `comboio´ lento, tranquilio, trazendo fardos, dirigido pela `madrinha´, tangido pelas cantigas dos com-boieiros, o encantamento dos `arranchos´ [...] as histórias de assombração, de dinheiro enterrado, de cantadores famosos perderam a sua melhor mol-dura. Toda essa revolução veio depois de 1911. [...] as `eras dos setecentos´ [...] Mordido de cobra não podia ouvir fala de mulher. Nome de menino era do santo do dia. [...] Os fazendeiros perdiam o nome da família [...] coronel Chico Pedro da Serra Branca, Manoel Bazio do Arvoredo... [...] Vivi nesse meio... [...] A herança feudal pesava como uma luva de ferro. Mas defendia a mão.”
    A poesia de Firmino Leite é o metabolismo dessa paisagem e desses costumes regionais. Souberam-no poeta porque esconder a poesia que lhe brotava do coração, seria cortar a sua própria vida. 
    Já andei por outros lugares, mas voltei para o sertão. Contrariando expectativas realizei o que ele tanto desejou e não pode fazê-lo: desfrutar os dias que me restam nesta sociedade que é o “cerne da nacionalidade” como a definiu o autor de “Os Ser-tões”. Viver e sentir o amanhecer, o entardecer numa fazenda velha sem o luxo da piscina, da cerâmica esmaltada; com os traços guardados do escuro das camarinhas, com as mulheres na cozinha, com a fartura do leite, do queijo, do feijão, do angu.


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