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  • Amor e morte

    11/02/2015

     A CASA enchera-se de gente. A presença de estranhos, o ar de curiosidade estampada nos rostos que o observavam, irritavam-no. Solicitado insistentemente pelo advogado, decidiu falar. “ — A noite estava muito escura. Não havia nuvens e des-tacavam-se no fundo negro do céu os milhões de estrelas visíveis a olho nu, a poeira da Via Látea. Não atentei de imediato para as sombras ao meu redor. Como fazia todas as noites, deixava-me possuir por aquela solidão imensa, protegido pela distância das pessoas, obliterando nos primeiros momentos, a lembrança de fatos da minha vida, ao acordar de um sono profundo no alpendre. Sentia aquela sensação de integridade que a satisfação pessoal nos dá. Longe de tudo e de todos, dormia as primeiras horas da noite na ampla rede, as luzes apagadas, guardado pela empregada obediente e atenta às minhas ordens, para servir-me água e café quando eu pedia, para administrar-me medicamentos recomendados. Éramos os únicos habitantes da casa. A uma distância de duzentos metros estava a casinha do administrador da fazenda, com a mulher branca e gordinha, cabelos castanhos, lisos e curtos, alguns filhos também brancos e gordinhos, silenciosa àquela hora. O meu relacionamento com a vizinhança obedecia a critérios estabelecidos pelo meu humor instável, que todos inteligentemente descobriram. Assim eu conseguia viver a maior parte do tempo no isolamento a que me submetera e me fazia bem. Dono de terras, raciocinava com o maldito Ezra Pound que “os ricos têm mordomo e não têm amigos”, o que pouco me importava. Mas inesperadas e vivas recordações de acontecimentos e o casual chamamento de compromissos irrecusáveis, que a minha vida anterior impunha dolorosamente, chegavam sempre. Ouvi então, passos leves e rápidos na minha direção e aguardei que se aproximassem, na escuridão, sem me sobressaltar. Os ruídos da noite, conhecia-os bem, vinham do curral, do vento nas matas, e, espaçadamente piavam aves noturnas. Quem se aventuraria a procurar-me àquela hora, sem se identificar à distância, sem provocar a ira do cachorro deitado debaixo de mi- nha rede, que espiava alerta? O cão ergueu-se e alegremente re-cebeu o vulto que se acercou da rede e sentou-se macio, acendendo os meus sentidos. Quantas vezes na minha vida fatos semelhantes tinham acontecido, guardada, entretanto, uma tácita e criminosa cum-plicidade! Tarde, muito tarde, o sexo saciado, a carinhosa sombra feminina beijou os meus cabelos e afastou-se, silenciosa como chegara. Pablo Neruda narra um episódio de sua vida no Ceilão, em que se atrasando para um encontro com amigos ingleses, des-culpara-se por haver parado no caminho para ouvir música. Vivendo há vinte e cinco anos ali, eles surpreenderam-se ele-gantemente. Música? Os nativos tinham música? Eles não sabiam. Era a primeira vez que ouviam fakar. Por favor não interrompam! Conhecem por acaso, o axio-ma chinês sobre as três versões possíveis para um fato qualquer? Existe, pois, a verdadeira. Vocês nada podem acrescentar que vê-nha esclarecê-la. Na manhã seguinte, a minha amante noturna visitou a co-zinha. Ouvi-a conversando com a empregada. As vozes mistura-vam-se ao barulho da água jorrando da torneira, ao tinido dos talheres e de louças na pia, sugerindo a intimidade feminina. Encontrava-me no quarto e depressa dirigi-me para o alpendre pa- ra falar-lhe quando ela passasse. Cheio de curiosidade, pensava repetidamente no insólito acontecimento da noite, pois entre nós não se estabelecera aquela conivência comum aos amantes. “Marta!” - exclamei ao vê-la andando rápida, sem se deter. Senti-me bem disposto e fiquei a observá-la no caminho, o corpo inclinado para a frente, como nas marchas resolutas. Estava convencido de que ela voltaria no negrume da noite sem lua, quando o marido cansado, dormiria profundamente. Vira-a todos os dias, indiferente, ao longe, na labuta em redor da casa, carregando lenha para o fogão, juntando as ovelhas à tarde para o abrigo. Notara-lhe as faces coradas, a pele sedosa apesar do sol, o ventre volumoso por sucessivas gestações. Não chegara ainda à velhice, talvez não tivesse mais de trinta anos. Vivia em harmonia com o marido, branco e forte como ela, sisudo, eficiente no trabalho. O que a teria arrastado a tão estranha aventura? Evitávamos o Sol que tudo vê, e apenas a Via Látea testemunhava os nossos en-contros. Não sou dado a reflexões filosóficas, reconheço-o. O bem e o mal, causadores de guerras e dissídios, aceito-os e contra eles rebelo-me, dadas as circunstâncias. Guardo um texto de Sextus Empiricus, pirroneano, autêntico e conseqüente: “O ceticismo é a faculdade de opor as aparências e os conceitos, de todas as manei-ras possíveis, o que permite chegar, em virtude da igual força das coisas e das razões opostas, primeiro à suspensão do juízo, segundo à ataraxia.” Mestre era Epicuro. Falei ainda para o delegado, empos-tando a voz: − A vida é o quinhão de todos. Cultivo o meu jardim, procuro desfrutar dos prazeres que puder gozar. O senhor com cer-teza é cristão - todos o são! - e ilustrado, deve ter lido o livro de Jó. Ali está narrada a tragédia da luta do homem com o seu destino. Como se explica que sofra o justo enquanto o ímpio desfruta dos prazeres da existência? O catolicismo farisaico e repressor das nossas paróquias não comenta, como deveria, o drama do inculpe duramente castigado. O marido suspeitava de algo, é claro, depois de algum tempo. Era ameaçador no sua rudeza. Mas não atraí a desgraça para a sua casa. “Você notou - ela disse-me à noite, alisando os meus cabelos, escorregando a mão pelo meu corpo nu - eu olhava para você quando ia para o curral ao lado do meu marido. Achava-o mais forte e mais bonito na sua riqueza, apesar de mais velho. Eu estava certa.” Sinceramente, confesso que não tenho deuses, e que, nos momentos difíceis dialogo comigo mesmo, deixo por conta do destino o acerto ou o erro das minhas ações, disposto a delas pres-tar contas em qualquer tribunal. Porque, se existe um Deus deci-dindo sobre os nossos destinos, a Ele entrego os meus pecados.” Parou neste ponto a narrativa feita de um fôlego, sem se deixar interromper pelo advogado que o observava, escutava tenso e falou irritado: — O senhor não forneceu qualquer elemento para sua de-fesa. Limitou-se a divagações que não lhe ajudam. Na verdade, o senhor precisa mesmo é de um psiquiatra. Fechou-se em lembranças, e não pronunciou nenhuma palavra mais sobre o assassinato do administrador da fazenda à sua porta, à fraca luz das estrelas, sob a poeira da Via Látea."


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