Página inicial


  • As horas trágicas

    01/02/2015

     "OS CÚMPLICES AS CORTINAS pesadas desciam ao longo da parede, escondendo a janela que dava para a rua, obstruindo a entrada de luz, de ar, de ruído. Sim, o barulho que vinha de fora: a explosão dos motores dos veículos, todos os sons misturados sem harmonia. Gritos, vozes, choques. Havia árvores velhas na calçada, porém, os pássaros tinham fugido e o verde era vazio de gorjeios. O ambiente denotava o esmero e a intencionalidade com que fora construído. Dois amplos compartimentos, separados por cortinas que fechavam o largo vão de comunicação entre eles, compunham o conjunto. Ficava-se ali, completamente isolado do mundo exterior. Um jovem de físico avantajado encontrava-se em pé no meio do compartimento que servia de biblioteca. Sem reparar para a outra peça, aproximou-se da estante que ocupava toda uma parede. Bem dispostos nas prateleiras, compondo conjuntos, os livros não lhe despertaram interesse pela leitura. Pelo contrário, pareceram-lhe ornamentos, e dominou-o a im-pressão que estavam fixos na reentrância, nada haveria escrito nas suas páginas, que talvez nem existissem. Uma vaga perturbação possuía-o, pela convicção de que não deveria estar naquele lugar, que um equívoco adrede preparado criara-lhe tal situação. Sentia que se estabelecia entre ele e outra pessoa que se encontrava no compartimento ao lado, uma comunicação telepática à qual procurava furtar-se, sem coragem para encará-la e conversarem clara e francamente. Ondas eletromagnéticas penetravam-lhe o cérebro, vindas com regularidade, produzindo-lhe náuseas. Cansado ele voltou levemente a cabeça para um lado, evitando olhar para a sala contígua. As cortinas vermelhas, artisticamente onduladas, pen-diam imóveis. A luz difusa derramava-se pregando manchas coloridas na decoração, envolvendo os delgados móveis de formas retilíneas, os vidros que repousavam nas armações de aço inoxidável, os quadros na parede em abstratas explosões de linhas, de sombra, de luz, guardados em molduras de alumínio. O ar renovado pelo condicionador era agradável e o ruído da máquina o entorpecia. Compreendeu que não desejava ler nenhum livro, e que a contemplação de um quadro não lhe despertava nenhum prazer estético. Apenas sentia a necessidade de afastar-se, deixar aquelas salas e libertar-se das forças estranhas que o tinham arrastado e o prendiam naquela atmosfera afligente. Pressentia inauditos fatos prestes a acontecerem, e uma vontade irreprimível impelia-o a tomar a decisão que considerava impossível de realizar: fugir, integrar-se à massa humana que percorria as ruas com obstinada determinação, readquirir a sua condição de membro da sociedade organizada, alcançar um objetivo útil. Não. Não podia se voltar, encarar o homem que o fitava sentado no divã no compartimento vizinho. Ao chegar encontrara a porta entreaberta e apenas a empurrara, entrara na sala. Num relance examinara bem o extraordinário lugar, e entrevira a pele alvoazulada pregada nos músculos flácidos das mãos e do rosto da esquisita personagem. Sentira-se atravessado, inteiramente des-coberto no seu íntimo pelo olhar brilhante, cheio de estranha ansiedade e vago temor. Procurou dominar a cólera que começava a possuí-lo, ao perceber que a figura movia-se na sua direção. Detestou a condição humana. Num espasmo, em violenta crispação, sentiu correr-lhe pelo queixo fios quentes de sangue, e das mãos, o sangue escuro gotejar sobre o tapete. Tentou manter firme o raciocínio, evitar um desmaio, temeroso que a pele untuosa aderisse ao seu corpo, e toda a miséria daquela criatura caísse sobre a sua vida. Sabia, entretanto, que era difícil fugir. Tornara-se cúmplice do abo-minável procedimento, e nada o eximiria de culpa. Refletiu sobre as aberrações espantosas em que se compraz o espírito humano. Através da comunicação telepática ouviu os aterrorizantes e surdos rugidos que rolavam no peito do nauseabundo ser. Percebeu-o bem próximo, viu-o transparente e tremente como uma gelatina, e sentiu que sugavam os seus lábios demoradamente, depois bebiam o sangue que escorria pelo seu corpo. Desmaiou quando constatou que a sua própria pele se tornava alvoazulada, e eram então, dois seres de almas iguais." (continua) ................................."


    Voltar