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  • Dezinho, a saga de um sertanejo

    19/08/2015

     “Aquele que crer em mim, ainda que morto, viverá”.

    Jesus Cristo

    Imagine um jovem de apenas dezesseis anos e habitante do pequeno povoado de São Francisco que resolve antecipar a maioridade civil e embarca para uma aventura na gigantesca cidade de São Paulo, no já distante ano de 1951. Esse jovem existiu e respondia pelo nome de Deusdete Queiroga de Oliveira, que a Paraíba inteira conheceu como Dezinho de Louro (referência a Louro Nascimento, seu pai).

    Nascido em 27 de junho de 1935, Dezinho subiu ao Plano Celestial no último dia 4 de agosto, pouco depois de completar 80 anos bem vividos. Levou na bagagem uma história de bondade, de amor à família, de lealdade aos amigos, de solidariedade ao próximo, de vida inteligente, de empresário empreendedor, de político ativo e de homem criativo. Esse justo reconhecimento não é só meu – é de todos que o conheceram de perto.

    Conheci Dezinho ainda na infância. Na época, já havia deixado para trás a experiência vivida em São Paulo, como motorista de ônibus, e fixara residência em Sousa, onde instalou uma fábrica de cadeiras de ferro, bem próxima à minha casa da Rua Sinfrônio Nazaré. Era de lá que ele vinha ao encontro do meu pai, Chico Leitão, para um jogo de cartas ao lado de outros amigos. O que me impressionou nele foi aquele jeitão animado, descontraído e brincalhão.

    Esse seu espírito, digamos, carregado de energia positiva, acompanhou-o pelo resto da vida. Bem, faltou mencionar mais uma de suas qualidades: o excessivo otimismo. Reunindo todos esses traços de seu perfil, decerto estava escrito nas estrelas que Dezinho não tinha como destino ser apenas um empresário local. Seu mundo já era maior do que São Francisco na adolescência e seria maior do que Sousa na fase adulta.

    Com a visão sempre à frente e dotado de privilegiado talento, Dezinho trocou as cadeiras por caminhões-caçamba e enveredou pelo caminho da construção de estradas, começando pela rodovia federal que hoje liga João Pessoa a Cajazeiras, à época construída pelo Grupamento de Engenharia do Exército. Pela qualidade e eficiência dos serviços prestados, ganhou a respeitabilidade do contratante e as tarefas foram se multiplicando, transpondo os limites territoriais sertanejos.

    Foi a partir daí que o sagaz Dezinho descortinou novos caminhos, avançou por outros Estados e transformou sua empresa, a Cociga, numa referência para além do horizonte paraibano. Tal não ocorreu, à evidência, por um passe de mágica. Foi preciso trabalho intenso, renúncia de toda ordem e foco nos objetivos. Rapidamente a empresa não era mais a mesma: ampliou a oferta de serviços, dispunha de avião, dezenas de empregados e uma invejável carteira de clientes.

    Poucos sabem que saiu da cabeça de Dezinho a urbanização dos bairros sousenses Frei Damião, Palha, Zú Silva e Dr. Zezé. Na época Antônio Mariz era diretor do Banco Nacional da Habitação (BNH) e fui chamado por ele para levarmos o projeto ao líder, que o aprovou prontamente. Foi a maior intervenção urbana da história de Sousa, levada a cabo em parceria com a Companhia Estadual de Habitação Popular (CEHAP), no ano de 1985.

    No entanto, o novo rico empresário, que se fez por si – o self made man, como dizem os americanos do norte – não tinha vocação apenas para os negócios. Era também político por natureza. Ligado a Antônio Mariz, passou a fazer um contraponto a outro poderoso empresário do grupo político adversário, o industrial José de Paiva Gadelha. “Dezinho é o nosso Zé Gadelha”, gabavam-se os marizistas. De fato. Nas campanhas eleitorais, Dezinho transformava a Lagoa dos Patos em um supercomitê.

    Por lá transitavam políticos de mandatos, aspirantes a cargos eletivos, lideranças comunitárias, cabos eleitorais e pedintes em geral. Nenhum saía sem um sorriso estampado no rosto. Na eleição de 1988, em que seu então genro Ricardo Augusto era candidato a vice-prefeito de João Estrela, Dezinho contratou a banda João de Orestes para abrilhantar os comícios na campanha toda e ainda trouxe Genival Lacerda para animar a festa em várias ocasiões. Tudo por conta e iniciativa dele.

    A campanha de Deusdete, o filho, para deputado estadual em 1990 colocou Dezinho ainda mais no centro da política paraibana. Migrou para o PRN de Tarcísio Burity e estadualizou o prestígio, embora tenha se afastado partidariamente do amigo Mariz. O filho acabou sendo o mais votado do Estado. Os dois amigos se reencontraram no segundo turno da eleição no apoio a Ronaldo Cunha Lima para governador, estiveram novamente separados na eleição municipal de 1992 (quando Deusdete Filho disputou a prefeitura de Sousa contra Marizinho Abrantes), mas se realinharam definitivamente na eleição seguinte, quando Mariz disputou e venceu para governador.

    Mas não há como falar em Dezinho como o empresário de visão e o político vibrante sem destacar outro traço dele, talvez o mais substancial – seu lado humano. Sua solidariedade com as pessoas, próximas ou não, era invariável. Praticava a caridade sem interesse ou distinção. Quando Lindinalva, sua querida e inseparável esposa, foi acometida de uma doença grave, considerada incurável, ele deixou de lado todas as atividades e seguiu com ela para São Paulo, Capital, dedicando-lhe por três anos assistência integral.

    A meu juízo, a morte de Lindinalva provocou mudanças profundas em Dezinho. Eu notava que ele se esforçava, mas não conseguia esconder um forte traço de tristeza que sentia bem lá no íntimo. Foi paulatinamente se isolando em casa, se afastando dos amigos e mantendo seus contatos quase completamente restritos aos familiares, sua mais arrebatada paixão.

    Quando recebi a notícia de sua morte, repassei na mente todos os momentos que pude lembrar da nossa convivência. Entre estes, ouvia sua voz pedindo a Navinha para mandar fazer um café novo pela minha chegada à Lagoa dos Patos; gritando pelo Nêgo Valdemar; fazendo gracinha com o sobrinho Sandro; mandando o avião buscar Pinto do Acordeon de última hora para puxar o fole, depois de sorver alguns goles de cerveja; trazendo o Rei Luiz Gonzaga para Sousa; pregando peças em Zé Pordeus; armando as redes no terraço da casa; delegando missões aos irmãos Sezino e Olímpio; embarcando com ele no Sêneca; dizendo que não saia de carro na posição de ré; ou me convidando para explorar uma mina de talco em São Francisco.

    Eis um pouco da saga, das paixões que cultivou e das coisas que Dezinho de Louro gostava. Não é qualquer um que larga o cabo da enxada em São Francisco do Chabocão e aprende a dirigir pelas ruas de São Paulo. São poucos os que trocam o volante de um ônibus pelo manche do avião. São raros os homens que deixam para trás uma fabriqueta de cadeiras em Sousa para erguer uma construtora que ganhou o Brasil.

    Há homens que não morrem, se encantam, como recitou Guimarães Rosa. Perdemos Dezinho ante a inexorável finitude da vida, como bem retratou Gabriel García Márquez em Cem Anos de Solidão, mas fomos presenteados por ele com uma história imortal, uma biografia decente e uma imensurável fé em Deus. Seu lugar, ao lado do Pai Eterno, é o nosso conforto. Sim, Dezinho não morreu.


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