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  • Varsóvia revisitada e outros ensaios

    14/04/2016

    Manhã de domingo, dia do Plebiscito que tratava da tentativa de desarmamento da população. Cheguei da fazenda, onde vivo intranquilo, sem o encosto necessário de uma arma de fogo, nestes tempos de insegurança e de violência comprovadas.
    O governo exercita a prática da democracia em propostas insólitas, numa pretensa demonstração de empatia em relação à sociedade. Decidi votar “não” à proibição de comercialização de armas e munições. Uma decisão pessoal fruto de circunstâncias inarredáveis que me cercam. 
    Lá onde moro, como me valeria o aparato policial-repressivo do Estado diante de necessidade eventual? O problema é outro, nasce de outra forma de repressão, esta poderosa e secular, excluindo vastas parcelas da população da proteção e das garantias asseguradas pelo chamado Estado de Direito.
    No meu apartamento na cidade, meditava nestas questões quando fui despertado por pancadas ─ um tropel incomum no andar térreo do pequeno prédio. Era o amigo Paulo Gadelha pajeado pelo seu desenrolado e inteligente assessor, e também meu amigo Chico Bacana se anunciando.
    Paulo é assim mesmo em certas ocasiões. Explode em efusão falando apressado, engolindo sílabas, palavras inteiras, depois se recompõe, exprime-se numa dicção esmerada, perfeita. Outras vezes tropeça, perde o equilíbrio, dá encontrões. Em seguida apruma-se elegantemente. Protagoniza largos e estudados gestos, como num corpo de baile. Traja com esmero, embora não tenha aprendido com a mãe nem com a ama da infância a pentear os cabelos (hoje escassos), e, tampouco, herdado do pai a prática do elegante nó da gravata. Recorre a mordomias, a assessorias generosas dos que o cercam e o servem.
    Paulo tem tradição. Costuma freqüentar os casquilhos salões, o circuito das reuniões vip, os fóruns engalanados em cerimônias oficiais no seu rigor ritual, litúrgico, diríamos. Está habituado a receber e distribuir cumprimentos. Foge do comum das pessoas. Dizem que é a marca do superdotado, do bem situado. Tenho certeza que não estou indo longe demais. 
    Vindo do ambiente das altas cortes judiciárias, ele um Desem-bargador Federal, cumpria no momento, o seu dever de cidadão perante a Justiça Eleitoral, e atestava igualmente os deveres da cortesia, visitava familiares e pessoas de sua intimidade. Um exemplo.
    Recebi das mãos do amigo, duas publicações de sua lavra. Uma contém discursos que pronunciou em reuniões formais, como figurante, destacado pelo mérito da investidura, usando a palavra, ele dono de inigualável e pessoal estilo – mestre da retórica, criador de metáforas copiadas, repetidas. Outra contém breves ensaios sobre assuntos variados, desde exegeses doutrinárias de temas jurídicos, hoje o seu campo de atividade como magistrado, aos domínios da estética, da literatura de ficção e sua teoria. Comentando obras mestras que marcaram épocas, a sua repercussão no mundo civilizado, adentra as artes plásticas, o cinema, do Ocidente ao Oriente. Vara séculos viaja de Cervantes a Nabokov, de Platão a Norberto Bobbio, Machado e Eça, e teóricos da sociologia, da economia, da História, da filosofia, em suma. Falo do seu livro recente “Varsóvia Revisitada e Outros Ensaios” (EBGE – Gráfica Santa Marta. Recife-João Pessoa 2005)
    Vale ressaltar no pensamento, na palavra, nos escritos de Paulo Gadelha a marca da erudição, da exposição que se origina na reflexão das grandes questões colocadas pela filosofia e pela ciência, envolvendo o homem e a natureza, o momento presente de modo especial. As linhas do seu pensamento, as suas idéias, a enunciação precisa dos seus parâmetros evidenciam-se claramente, numa síntese reveladora à moda haicai, diría. 
    Do passado Paulo guarda somente o gosto pela retórica apurada, pelas metáforas grandiloqüentes, em textos e comunicações breves. Para que tanta prolixidade, tratados enfeixando grossos volumes, quando quase tudo se resume em curtas frases? “No princípio era o Verbo”, “Tudo que é sólido desmancha no ar”. Resta-lhe o humanismo que é vezes beligerante, vezes romântico. Aceso o fogo do debate, como o Quixote ele combate até moinhos de vento, recorrendo a ensanchas da prática dissimulada do rotundo escudeiro manchego. Contradições, quem não guarda as suas?
    Eis, portanto, o homem político, polido, o liberal, o democrata que propugna em termos precisos as suas teses. Levanta-se, com a bravura indômita de um fundamentalista, em defesa da Organização das Nações Unidas, agredida por Washington e Londres no episódio trágico e sangrento da guerra do Iraque.
    Paulo é um pacifista. Assim o vejo. A luta, o combate que ele procura e enfrenta com entusiasmo e gosto, é no campo das idéias. Alimenta e fortalece o seu espírito como o fizeram os grandes do mundo do conhecimento, bebendo as idéias dos outros, esmiuçando a seqüência histórica dos acontecimentos, ruminando-os em reflexões profundas, criando os seus conceitos, as suas teses. Ele faz da ONU a sua referência. E perora: “É violência inominável desrespeitar as decisões de um organismo que surgiu com o objetivo de civilizar as relações entre os povos.” Paulo é um homem civilizado, inegavelmente,
    É preciso nas suas assertivas: “O mandado de segurança nasceu com a Constituição de 16 de julho de 1934, bem como o quinto constitucional, isto é, a presença do Ministério Público e da Advocacia na composição dos Tribunais do Brasil.” “No Brasil a preocupação com a saúde é imperativo constitucional. Com efeito, di-lo de forma solene o artigo 196 da Constituição Federal.” Todos o sabemos, mas é necessário precisar tais informações, oportunamente, revelar o seu sentido histórico, como ele o faz.
    Vejam em que deu a nossa amizade. Entre outras lembranças mais representativas do exercício dos nossos mandatos, ficou também a memória de amenidades de nossa convivência como parlamentares na Assembléia Legislativa da Paraíba. As viagens de trabalho por três continentes, desde Bogotá a Nova York, da cidade do México a Belgrado. Alguma coisa de fato restou, como o embarque dos EUA para a Inglaterra sem o visto de saída carimbado no seu Passaporte, a forçada permanência em Lisboa, em face da falta de vaga no vôo pretendido para o seu regresso ao Brasil, por não haver reconfirmado a data no bilhete aéreo. E tem aquela desconcertante entrevista com a licenciada Clara Jusidman, do Ministério dos Assentamentos Humanos do México. Em face do calor reinante, numa tarde quente na proximidade da Basílica de Guadalupe, ela nos recomendava “Quitar el saco” (traduzo: tirar o paletó), que não chegamos a entender, a despeito da fama de poliglota de Paulo, e de haver o nosso companheiro médico Manoel Gaudêncio que residiu em Madri cumprindo estágio um ano inteiro, ter-se inimizado com a lingua espanhola . Equívocos que nos perseguem e deixam marcas agradáveis na lembrança. 
    Tem muito ainda para contar, e mais para lembrar.


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