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  • Ronaldo Cunha Lima, poeta de sala e quarto

    13/03/2015

     Afastado da leitura, morando no mato, eu não acreditava nos seus livros de que ouvia falar. Para mim, ao escutar os ecos e vozes dos seus versos, ele era um poeta de gênio, mas eminentemente verbal, açodado, que improvisava, porém não escrevia poesia. Não lhe so- brava tempo. Seria como os nossos irmãos violeiros e repentistas, um Inácio da Catingueira, um Pinto do Monteiro ─ e no contexto e textos que demandam a nossa tradição cultural, a nossa história ocidental ─ o nosso Homero da Borborema.

    Eis que um livro seu me chegou às mãos, com um atraso de treze anos. Não a esperada epopeia. Poesia anacreôntica, isto sim, dominada pelo erotismo báquico de suas canções, o lirismo sensual de epitalâmios. Falo de ”Poemas de Sala e Quarto.” E o traço barroco- sensual das ilustrações de Flávio Tavares, um incontestável gênio do desenho e da pintura, cumpre o objetivo da obra poética, completa os propósitos do autor. Comprei-o em liquidação na Livraria Universitá- ria na praça ao lado do antigo Capitólio. Que obra! Perdoem-me os despeitados, os tipos rebarbativos que flutuam nos salões, com o risco de pipocarem como bolinhas coloridas que enfeitam festas, palhaçadas infantis.
    Para falar sobre o seu livro, evito a tentação do método de Jakobson na análise sobre Lês Chats, de Beaudelaire, reduzindo à coordenação das proposições da língua, faces do poema que in- teressam à sociedade e à história; diferentemente de Carpeaux que revelou as transformações e transfigurações que sofreram a imagem do poeta “vase de tristese, ó grand taciturne”, nos olhos da posteridade, e do prefaciador Nêumanne nos comentários buscando nos domínios da literatura comparada a explicação do poeta Ronaldo de Campina.
    Aventuro-me na tentativa de anunciar uma nova técnica de expressão poética, aliás, corriqueira no gênero. O escritor Ricardo Soares comentando Ronaldo, socorre-me, afirma que “a verdadeira poesia é diferente para cada poeta em cada momento... inspiração, experiência, confissão, lembrança, conhecimento, um sistema coerente de pensamento, sutil música verbal.” Encontro algo parecido nas sentenças breves contidas no estilo-modelo haicai que nos oferecem os filhos do País do Sol Nascente; no modo rocambolesco, misterioso e investigativo de Chordelos de Laclos; na lascívia oriental de Omar Kayan; no socialismo stakhanovista de Vladimir Maiakovski e mais inventores e criadores que passeiam entre os gregos, romanos e levantinos, com as mais variadas técnicas do verso, praticadas e aceitas, algo poundiano; e a adequação da língua, nas variações da sua prosódia ajustando as idéias à melodia de um texto aforístico, pra- zeiroso pelo seu lirismo, erudito pelo seu conteúdo. Eis os segmentos apotegmáticos de Poemas de Sala e Quarto.
    “– Na sala / eu sou ¼./ No quarto/ eu sou inteiro,” 
    Jacta-se o poeta. Verdade ou mentira? Fingimento? Dissi- mulação? Algo sofrido? Como descobrir les liaisons dangereuses que escondem as suas palavras? Simplesmente jogo de palavras? Ah! Como os poetas se conhecem. Pessoa bem que o afirmou: 
    ”O poeta é um fingidor,,, / E os que lêem o que escreve/ Na dor lida sentem bem/ Não as duas que ele teve / Mas só a que eles não têm.” 
    Em Ronaldo o apetite sexual parece uma eterna busca. “Poemas de Sala e Quarto” o confirma. Ele deseja estender até ao mundo dos inanimados, das coisas materiais a incontida ânsia dos seus desejos: 
    “Se nossos chinelos vissem/ sobre a cama os travesseiros/ talvez até decidissem/ sob a cama ser parceiros.”
    Mas carrega as suas estações de dolorosa parada para reflexão. Ronaldo é um poeta ligado a um momento da história política pa- raibana, nacional. Não tenho coragem de dizer, de julgar o que mais o distingue ao longo de sua vida. Como acertar, se ele dissimula e finge? Uma condição explícita o caracteriza, e todos concordarão: foi o poeta político que disputava eleições, fez oposição ao regime militar, na Paraíba e por onde andou. Lutou, não cedeu, venceu. Maiakovski, entre todos os títulos, consagra-o o de “poeta da revolução russa.”
    “Muito pior, com certeza/ que uma sala sem mesa/ é uma mesa sem pão”. 
    Sua mente não repousava. Muito ainda resta para falar sobre Ronaldo e Oinotna para completar o ciclo da vida: a severidade e a alegria, os lauréis e as palmas. Campina rediviva.
    Quero deixar claro. Vi a luz da vida em Sousa, onde nasci, falo com orgulho. Em Campina recebi os raios dos conhecimentos acu- mulados pela sociedade, descobri a prática da invenção, da construção, da criação, da imitação com os seus perigos inerentes. De Sousa guardo a memória do aprendizado, do espanto com os fatos da vida, destruindo já a inenarrável memória da infância; de Campina a descoberta do colóquio libidinoso dos poetas com os leitores, com o mundo ─ que permanece dominante nas reflexões inevitáveis. O amor e a guerra entrelaçados.
    *
    Campina nada deve a Dublin nem a Londres, a Paris nem a Boston, a Pequim nem a Moscou. As pessoas e a sociedade cumprem as mesmas tarefas. Nada as distingue, exceto o nome dos narradores de suas trilhas aventurosas ─ inevitável mesmice das tragédias e comé- dias. Nada existe de novo debaixo do sol, adverte a sabedoria bíblica. Com efeito, não dá para rememorar tudo, conferir tudo. Por isso identifico no campinense Ronaldo, um criador entre tantos, um metingueiro, que insiste em viver na rua, e se esconde, hoje, convocado pelo Olimpo para ocupar o seu lugar no Parnaso.
    Ninguém melhor do que Ronaldo entoa o profético cantar dos poetas de que falou Pound, criando, inventando estilos e formas.
    Impõe-se, no caso, numa leitura crítica e comparativa de todo Ronaldo, uma releitura de O EU PROFUNDO E OUTROS EUS, de Fernando Pessoa, e de POESIA, de T. S. Eliot, em tradução, intro- dução e notas de Ivan Junqueira. Surpresa?
    A poesia no seu conteúdo, na sua forma deve a sua expressão à emoção, sublinho. Assim entendem T.S. Eliot e Fernando Pessoa. Vou transcrevê-los, adiante, em apoio às minhas afirmações.
    A emoção. Dorme no cérebro, no fundo da consciência, nos neurônios para falar moderno, esse poderoso sentimento, até que des- pertado, caracteriza o fazer humano. A arte é profundamente emo- cional. A leitura dos versos destes dois poetas transmite-nos esta certeza; mas, igualmente racional e intencional, se atentarmos para o “vanguardismo” técnico presente nas suas obras.
    A arte poética, todavia, não se esgota na renovação formal.
    Fernando Pessoa escreveu: “Um poema é a projeção de uma idéia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão somente o meio de que a idéia se serve para se reduzir a palavras.”
    Escritura de Eliot: “The only way of expressing emotion in the form of art is by finding an objective correlative; in other words, a set of projects, a situation, a chain of events which shall be the formula of particular emotion.”
    Pessoa fala em “emocionalizar o pensamento”, e Eliot assinala “the intensity of the artistic process.”
    O tema oferece-se, portanto, para uma análise de aproximação da técnica de construção poética, que encontramos nas variações estilísticas e temáticas de Ronaldo, arrebatado pela emoção, poeta capaz de cantar baixinho, de chorar e de explodir em gritos to- nitruantes, no caudal da emoção, que, admito, é o seu estado e espírito. 
    Poetas, historiadores, romancistas, estadistas. Toynbee, Proust, Confúcio, Hitler, Onassis, Rockfeller, Robin Hood, também tivemos os nossos. Apenas os nomes diferem, repito, tanto dos escritores como dos personagens, humanos sempre. Consultem Dinoá com seus re- tratos ao vivo, Josué Sylvestre com as suas revelações biográficas interpretativas, Epitácio Soares e Elpídio de Almeida com as suas fontes e o seu estilo paroquiais, e tantos e tantos, e lá encontrarão os generais, os capitães de negócios, foliculários e tratadistas eruditos, que viveram ou vivem ainda em Campina. Vejo e sinto no que digo verdades verdadeiras, constatadas irretorquivelmente. E Ronaldo as encarna multifacetariamente.
    *
    Não dá para falar isoladamente de pessoas na construção dos mitos que Campina propiciou, numa caracterização do sonho grego de uma civilização universal que se tornou única e insuperável. Tratemos de famílias e de tipos, de indústrias, no sentido de destreza, engenho e arte, que a notabilizaram, campinense na essência, enfim.
    Conhecemos os Lauritzen, Figueiredo, Almeida, Cabral, Gaudêncio, Habib, Chabo, Procópio, Luna, Tejo, Caroca, Cunha Lima, Asfora, Barreto, Rique, Amorim, Celino, Mota, Agra, do Ó, Hamad, Wanderley, Dantas, Rego, Pinto, Soares, Afonso Campos, e outros e outros, e os tipos e as personalidades inconfundíveis de Ataliba Arruda, Otávio Amorim, Pinta Cega, Mário Araújo, Zeca Chabo, Zefa Tributino, Nathanael Belo, Moacir Tié, Paizinho, Dona Irene, Fausto Alfaiate, Maciel Malheiro, Oliveiros Oliveira, Soares, Seu Muniz, Moço Amorim, Antonio Bioca, Nereu do Cartório, Giseuda Moreira, dr. Zé Arruda e Manoel Pé de Rotor, o impertérrito deputado e tor- cedor de futebol Orlando Almeida, as rádio Cariri, Borborema e Caturité e tantos e tantos, ah! Imperdoáveis omissões. No tocante à ideologias e proselitismo, tivemos o comunista Peba, que nunca esteve em Moscou em oposição a um empresário capitalista Barreto, que falava inglês e morou nos Estados Unidos. Paremos no começo.

     
     
     


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