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  • Memória - Política Sousense

    21/06/2020

    Vivíamos os chamados “anos de chumbo” do regime militar. Cassado inesperadamente, o mandato do deputado estadual Romeu Gonçalves de Abrantes, do nosso grupo, ressentida, a sua família afastou-se da cena política. Aproximando-se a data de eleição geral, inúmeras soluções eram sugeridas e apresentadas para escolha do sucessor. Apresentado na cidade o meu nome como candidato (presumivelmente por pessoas aparentadas de Clarence Pires, fruto de possíveis cochichos domésticos), João Agripino que percebera o risco de divisão entre os seus aliados dada a formação do novo esquema que reunia os Gonçalves e os Pires de Sá ─ dissidentes da UDN, seus amigos, e do PSD seus adversários, respectivamente ─, manifestou o seu desagrado a Antonio Mariz, seu Secretário Educação. Chateado Mariz demorava aparecer. Era a continuidade do jogo de interesses familiares, pessoais, repito. A esta altura, João assumira pessoalmente, com os bons ventos palacianos e a sua vigilancia indormida, as candidaturas de Mariz para deputado federal, e a contra-gosto, a do médico Evandro Gonçalves, irmão do cassado Romeu, como seu sucessor. Sousa foi surpreendida com propaganda geminada colorida, dos dois candidatos Mariz e Evandro. Socorria assim, o governador, o atribulado primo Mariz, criticando-o intramuros, por haver falhado na condução da política local, que ele se propunha liderar e lhe fugira das mãos. Mas os meus amigos, tambem seus correligionários, sentiram-se ofendidos, e começaram os enfrentamentos de praxe na disputa política.

    Nem tudo eram flores, como se diz. Encontrava-me numa encruzilhada, conhecia as minhas limitações, as minhas dificuldades. Era ligado, pela vizinhança de nossas residências na cidade, e pela amizade daí decorrente, ao coronel Manoel Gonçalves e aos seus filhos. O meu irmão Elzir era compadre do seu filho João. Deles eu recebera apoio na discussão das chamadas Reformas de Base, na luta sindical que eu sustentava na cidade e também nas posições do PTB nacional. Participara, igualmente, de suas campanhas eleitorais. Inquieto e assustado, portanto, eu, um mero colaborador, assumia uma dissidência num dos grupos que liderava a política no município.

    O acontecimento representava, entretanto, um estímulo às minhas convicções políticas e às minhas propostas de ação militante na cidade. Mantinha-me alerta e preparado, para a defesa e para o ataque. A luta política, desde os tempos acadêmicos, e na prática local e pelos relatos familiares, não me era estranha.

    Sousa a cada momento, reagia perplexa, mas, com manifestações isoladas de entusiasmo com o crescimento de minha candidatura. A imprensa estadual em coluna do conceituado jornalista e intelectual Virgínius da Gama e Melo, no “Correio da Paraíba”, destacava, saudava com otimismo e confiança a minha presença na cena política estadual. A aguerida elite da militância cultural na capital, assumia a minha postulação, com a veemência de aficionados nos seminários, nos bares. Transcrevo a seguir, trechos dessa histórica declaração elogiosa de apoio da cúpula intelectual a Paraíba, pelo seu mais importante porta-voz à minha recém lançada candidatura a deputado estadual. Uma conquista que honrava o meu nome e a minha cidade. O debate interiorano e modesto, ganhava espaço e proeminência no cenário estadual: Eis um parágrafo do documento:

    “EILZO MATOS. ─ Apresenta-se candidato à Assembléia da Paraíba o jovem doutor em leis Eilzo Matos... Advogado dos pobres, dos anônimos, dos humildes, botando sua mocidade, inteligência, cultura, a serviço dos oprimidos e necessitados. A todos levando o apoio da Justiça, a defesa dos seus direitos, a certeza de que no mundo não estão abandonados. Fazendo da profissão um sacerdócio, vivendo mais para os outros que para si mesmo... Por outro lado, a sua candidatura representa mais um passo na renovação dos costumes políticos paraibanos. Não é uma simples mudança de nomes ou apenas um nome novo que surge pleiteando uma cadeira na Assembléia Legislativa. Eis aí uma coisa que Eilzo Matos não pleiteia – uma cadeira, um assento, um lugar de comodidade. O que ele quer mesmo é uma posição, uma tribuna, um posto, onde, com maior amplitude e repercussão, possa afirmar suas idéias políticas renovadoras, progressistas sem subversão, visando apenas o bem estar que é o bem coletivo, a grandeza da pátria e do homem brasileiro… Eleito não irá repousar na Casa de Epitácio Pessoa. Ao contrário, a eleição marcará para ele não os louros de uma merecida vitória mas o princípio de um novo combate. MELO, Virgínius da Gama e, in Correio da Paraíba, 12 de agosto de 1970.”

    No contexto local, todavia, no jogo de afirmação e preservação de valores dos clãs tradicionais, eu quase nada representava. E tinha consciência disto, apesar de minha destacada origem familiar em linha reta, mas em Cajazeiras, em Piancó, que chegara à Câmara dos Deputados e ao Senado, ocupara secretarias de Estado, prefeituras municipais, a presidência da Caixa Econômica Federal, e mantinha desde o Império um deputado na Assembléia Legislativa. Mas valia pouco na disputa entre liderança de famílias, que era tão somente local.

    Em Sousa, na verdade, o meu pai, era apenas um imigrante que se estabelecera no comércio, e, encerrando as suas atividades, ocupava um lugar no serviço público, como Agente Fiscal do Estado. A tradição tinha peso, e o meu pai, consciente desta realidade social, pouco ou nada opinava sobre a política municipal, acompanhando, apenas, o seu irmão deputado Antonio Leite Montenegro, nas disputas estaduais.

    A luta seria minha, disso eu não tinha dúvida. E incontinenti a assumia, correndo o risco da disputa, como o fizera, isoladamente como dissidente do esquema local, em apoio á candidatura marcadamente socialista de José Joffili a senador em 1962, ele contestando a chefia estadual do PSD, seu partido.

    Precavido, entendendo a gravidade do caso criado, João Agripino decidiu intervir pessoalmente, definitivamente no processo, para afastar a minha candidatura e preservar a liderança local de Antonio Mariz, que ele sobrepunha à dos Gonçalves e Abrantes, mas deles necessitava politicamente, e pretendia mantê-los como aliados.

    Por seu turno, o grupo Gadelha e Oliveira desempenhava um papel relevante e independente na política estadual, afastara-se de sua chefia. Impusera-se com a escolha de Zabilo Gadelha para vice-governador, na chapa vitoriosa de Pedro Gondim. Elegera também o industrial José de Paiva Gadelha deputado federal, demonstrava crescente influência no cenário político e econômico do Estado, era considerado e respeitado pelo senador Rui Carneiro, chefe da oposição, como uma peça chave nas campanhas emedebistas estaduais.

    O raciocínio do governador alcançava longe. Conhecia a capacidade de luta e o aporte de recursos financeiros de que eles dispunham para as campanhas eleitorais. Tratava-se de antigos correligionários que conhecia de sobra, e enfrentava-os cauteloso, é preciso reconhecer.

    João via em Clarence Pires, o aliado de Antonio Mariz no momento, também o adversário histórico do passado (do velho PSD), eleitor de Ruy e Janduhy, seus opositores históricos na Paraiba, o que não era possível esquecer, ignorar.

    Para mim, todavia, estes (Gadelha e Oliveira e Pires e Sá) não constituíam os meus adversários, e também não me causavam receios, e pouco influiriam naquele momento. Conhecia a opinião dos familiares e liderados de Clarence que defendiam abertamente o meu nome como candidato.

    O meu problema era realmente com os Gonçalves de Abrantes, isto sim, velhos amigos que se recusaram a discutir a situação. Sem críticas à minha pretensão, tinham contudo o seu canidato, me abandonavam, e entregavam ao meu próprio e arriscado destino. Valiam-se os Gonçalves, da tradição e solidariedade social que lhes conferia liderança e prestigio.

    A situação era embaraçosa para todos, para o governador, principalmente, eu sabia. Era agir com prudência, deixar o tempo correr. Mas, articulado ou não com Antonio Mariz, muitos desconfiavam de Agripino, este também ofendido com o silêncio do chefe Augusto Gonçalves. E numa jogada esperta, precipitou os acontecimentos, anunciando uma reunião para consulta e decisão pela cúpula partidária da grande Sousa, sobre duas ou uma única candidatura a deputado estadual em nome do grupo. Contrafeito, eu me sustentava na convivência fraterna da minha presença, nas relações que ditavam alianças e afastamentos na sociedade sousense. Era um filho do lugar.

    O ambiente regurgitava, era tenso na casa velha dos Mariz na noite da reunião. As fisionomias contidas, mostravam o nível da preocupação geral. As pessoas formavam pequenos grupos nas salas, na calçada, muitos veículos estacionados na rua, Mariz e Clarence ora risonhos ora sisudos, portavam-se aparentemente calmos.

    O governador trancou-se num quarto e convidou um a um, num jogo de cartas marcadas, para o diálogo difícil. À medida que saíam do encontro, alguns me evitavam, outros olhavam-me com ar penalizado, ou apertavam firmemente a minha mão, em silêncio. Pesava o veto do governador à minha pretensão, eu percebia.

    A certa altura (acredito numa tentativa de pressão), o monsenhor Manoel Vieira, meu ex-diretor no internato do Ginásio Diocesano de Patos, onde eu estudara, e no momento deputado federal, que acompanhava o governador durante a visita, dizendo-se amigo do meu pai de quem fora contemporâneo no Colégio Padre Rolim, em Cajazeiras, chamou-me para um canto e anunciou contratempos e dificuldades que se armavam contra mim, em razão de minha candidatura. Que João não estava nada satisfeito. Que eu decidisse enquanto havia tempo. Eu não me elegeria, disse. Não tínhamos intimidade, amizade, posso dizer. A memória do meu tempo do colégio desaparecera, engolida pela coerção irresistível que o poder exerce sobre o clero. Deu o recado. Retruquei, ofendido, que tinha o apoio do povo e do Partido. Venceria. O padre riu, e essas foram as suas palavras, encerrando penalizado a conversa: “Os teimosos às vezes acertam. Pode ser o seu caso.”

    Por fim chegou a minha vez de ser levado para o confessionário. O silêncio era constrangedor, não se ouviam sequer cochichos. Aqui acolá uma careta, um suspiro isolado. Entrei no quarto e dei boa noite ao governador que estava deitado com as pernas cruzadas numa rede, e permaneceu calado, não me estendeu a mão. Cansado, ele aparentava um ar abobado, mas, mudou, malcontente.

    Sentei-me numa cadeira, sem pedir licença, e ele apelou para a esperteza. Sério e ríspido disse que conhecia bem o meu comportamento partidário, a minha estreita ligação política e ideológica com Mariz. Mas a minha candidatura provocaria um racha no Partido, o que significava o fracasso nas pretensões de líder de quem pretendia chefiar a representação local, Antonio Mariz. Eram claros o seu argumento e a sua intenção. Respondi que mesmo assim, mantinha a minha candidatura que contava com indiscutível e relevante apoio partidário. Eleitos ele teria também os meus votos, e o acatamento dos que me apoiavam. O governador era perspicaz, partiu para a tentativa de acordo (suborno). Me faria Procurador do recém criado Tribunal de Contas, e candidato desde já, na próxima eleição a deputado, com o seu apoio. Conversara com cada um dos que participaram da reunião, e as minhas chances eram mínimas, ele disse. Reagi, recusei a proposta e mantive a candidatura, pedindo a sua confirmação. Ele levantou-se bruscamente, num gesto estudado, ele que preguiçosamente mal levantava a mão. Retirou-se sem responder. (continua).

    Restavam poucas pessoas na casa. Tinham-se dirigido todos para a residência do coronel José Augusto Rocha, amigo pessoal do governador, compadre do meu pai, que era padrinho de sua filha Nely. Lá reinava certa balbúrdia, e haveria um jantar. Não era, mas parecia um rega-bofe nos momentos finais.

    Para lá me dirigi e fui informado por Clarence, ao chegar, que João Agripino encontrava-se na casa de Augusto Gonçalves, que, mais uma vez frustrara a tentativa de participar da reunião convocada pelo governador, e não comparecera. Eu comhecia o temperamento de Augusto. Sabia que ele não aceitava acordos e mediações, no momento. Queria mostrar força, conforme o seu hábito, tinha um candidato e pronto. João que resolvesse o problema no seu lado. O governador retornou carrancudo e foi servido o jantar. Depois de uma conversa reservada com Clarence e Mariz, eles me procuraram preocupados e reticentes, para comnicar a decisão final tomada pelo governador: seríamos candidatos a deputado estadual eu e Evandro, mediante as condições seguintes: Evandro seria o candidato oficial do partido, e tal seria declarado em todo e qualquer pronunciamento pelo prefeito Clarence Pires, pelo candidato a deputado federal Antonio Mariz, pelos candidatos a senador Domício Gondim e Milton Cabral, pelo atual e pelo futuro governador João e Ernani que o apoiariam. O advogado Eilzo Matos seria candidato pelo partido, mas obrigatoriamente declarado candidato em faixa própria. O prefeito Clarence Pires e o candidato a deputado federal Antonio Mariz ficavam proibidos de realizar visitas e participar de eventos e concentrações políticas e sociais em companhia do candidato Eilzo Matos.

    Clarence e Mariz ao me comunicarem a truculência, a brutalidade das imposições e mais exigências, afirmavam: “Augusto só virá para o jantar com o documento em seu poder, assinado por você. Você concorda se quiser, assinará o documento se quiser.” Estupefato, profundamente abalado pela rudeza do golpe, não indaguei qual a posição deles. Marchei para o embuste final. Cientificado da aleivosia, portanto, decidi encerrar a impostura, porque ali não existia negociação política. E disse em voz alta a João Agripinom para que todos ouvissem: “Tudo como o senhor quer, governador. Vou assinar o papel. Mas fique certo que será rasgado pelo povo numa semana. A realidade política do momento em Sousa é a minha candidatura, não este “relambório” seu e de Augusto.”

    João exasperado gritou para fazer cena, intimidar: “Fique certo que não fiz reunião e assinei documento, como governador, para ser desrespeitado por ninguém. Serei informado do que acontecer.” Era uma ameaça, que, todavia, não me intimidou. Irado, olhei para ele, levantei a voz e finalizei: “Veremos de quem é a parada.” A frase era chula, mas disse-a para baixar o nível.

    Vitorioso Augusto chegou para o jantar, a cara amarrada. Não nos cumprimentamos. O mal estar entre os presentes era evidente. Tudo terminou por aquela noite que já entrava pela madrugada. A comitiva governamental escafedeu-se velozmente para o hotel de Brejo das Freiras.

    A “nota” redigida e assinada, era lida de meia em meia hora nas estações de rádio de Cajazeiras, porque não existia estação de rádio em Sousa. Evidenciando-se como uma violência, o comunicado passou a ser contestado abertamente, e eu recebia a cada momento, inesperadas e animadoras declarações de solidariedade. Era a vítima

    Os Gonçalves e Abrantes exigiram mais: uma reunião partidária a ter lugar na residência do provecto Salatiel Marques Fontes, convocados os dirigentes do diretório local e das cidades vizinhas, que decidiriam (declarariam) sobre o apoio a uma única candidatura, no caso a de Evandro, tendo em vista que eu era candidato em faixa própria. A minha candidatura crescia. Eis o motivo do golpe final planejado.

    Articulei, então, uma reunião com os meus amigos, a ter lugar à noite, na minha residência no Alto da Cagepa, para decidir sobre a nova questão, na véspera da que fora marcada para os diretorianos na casa de Salatiel Fontes. Foi numeroso o comparecimento. Citarei apenas três nomes, para revelar o nível de comprometimento do partido com a minha candidatura: o saudoso Zuca Teodoro, presidente da ARENA, o padre João Cartaxo Rolim, vigário da paróquia de Nossa Senhora dos Remédios e o Promotor Público Sabino Ramalho Lopes. Mariz e Clarence não compareceram. Não é preciso registrar mais.

    Participei, na data escolhida, da numerosa reunião organizada no jardim do velho Salatiel, porque na casa não caberia tanta gente. Ao chegar, era olhado com certa hostilidade por alguns, com demonstração de contentamento por outros.

    Ali estavam os representantes das cidades vizinhas, dos distritos, meus conhecidos de longo tempo, de velha amizade, ligados à política local. A muitos prestara serviços advocatícios, a outros representara nas pretensões comuns, pleiteando no seu nome.

    Chegara o momento. Subi no tamborete, na hora certa, empurrado pelos amigos Célio Pires e Sabino Ramalho e me declarei candidato do partido, pois a ele era filiado e tinha os meus serviços prestados. Essa conversa que alguns sustentavam de candidato do partido e candidato em faixa própria, era uma falsidade, uma traição, uma lorota. Falei alto para ser ouvido por todos.

    ‘ Era o que o nosso grupo de amigos esperava. Aplausos explodiram. A noite tornou-se pequena para tantas comemorações, articulações e projetos otimistas para o futuro. Os Gonçalves de Abrantes retiraram-se carrancudos. (continua).


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