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  • Tradição ética e trabalho em Piancó - Humberto Cavalcanti da APL, do IHGP

    21/06/2015

     O nome não o indicava, mas Elzir Nogueira Matos pertencia a duas das famílias mais destacadas do sertão paraibano: os Leite Ferreira, de Piancó e os Matos Rolim, de Cajazeiras. Sua avó paterna, Francisca Leite Ferreira – dona Chiquinha – fugindo aos matrimônios endogâmicos, comuns nas famílias tradicionais, casara-se com o Juiz da comarca, o Dr. José Matos de Sousa Rolim, das núpcias, resultaram entre outros filhos Salviano e Tiburtino, ambos Leite Matos Rolim, este último o pai de Elzir e Eilzo Nogueira Matos.
    Viúva, dona Chiquinha voltou à terra natal, para criar filhos. Casou-se novamente, desta vez dentro dos hábitos familiares, com um parente distante, tendo outros filhos destas núpcias. Daqueles do primeiro leito, Salviano permaneceu em Piancó a partir de onde, apoiado na longa tradição política da família, encetou extensa e vitoriosa carreira, projetando-se política e admi-nistrativamente no estado e no país. Tiburtino foi para o Rio Grande do Norte, onde estudou, casou-se e lhe nasceram os filhos. 
    Elzir, porém, sempre se manteve ligado a Piancó e, principalmente ao tio Salviano a quem dedicou irrestrita solidariedade durante toda a vida. Salviano, já residente no Rio de Janeiro, atraiu o sobrinho que, na então capital federal fez curso de direito. Formado, preferiu regressar a Piancó onde a capacidade que já se lhe reconhecia, fez a família escolhê-lo pra disputar em 1955, a prefeitura, sucedendo a seu primo e futuro cunhado Djalma Leite Ferreira.
    A administração de Elzir em Piancó tornou-se um padrão de qualidade. Já em 1957 era escolhido, em concurso promovido por entidade nacional e divulgado na grande imprensa, um dos dez melhores prefeitos do Brasil. Não chegou a concluir o mandato, pois no ano seguinte, o governo estadual o convocava para ocupar a Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio.
    Foi então que o conheci. Eu era, na ocasião, oficial do gabinete do vice-governador em exercício, Pedro Godim. A chegada do novo secretário, aureolado com o renome de grande administrador, nacionalmente premiado, despertou natural curiosidade da grande parte dos auxiliares governamentais e da população que não o conhecia pessoalmente. Os primeiros contactos nos revelavam um homem ainda jovem – pouco mais de trinta anos – cortês, finamente educado, sem empáfias, mas sem acanhamentos. Era consciente de seu valor, mas essa consciência não o fazia assumir arroubos de superioridade.
    Pouco tempo depois de sua chegada, fui nomeado promotor público interino da cidade de Piancó. Lá aumentei as ligações com Elzir Matos. Nunca chegamos à intimidade, mas sempre fomos cordiais. Lá, também, pude observa-lhe o comportamento entre os conterrâneos. A todos tratava bem, a todos ouvia com paciência e deferência, até mesmo os adversários político que ele nunca transformou em inimigos e que, à unanimidade, reconheciam e louvavam seus dotes de administrador.
    Essa Secretaria foi o primeiro dos cargos exercidos por Elzir Matos fora de sua Cidade. Cinco vezes voltou a ocupar pastas estaduais, num reconhecimento de governos, das mais diversas tendências políticas, a seus méritos. Esteve em Funções de relevo na alta administração federal e em entidades de âmbito nacional e representou o Brasil em congresso da Organização Internacional do Trabalho. Em todas sempre se houve com aprumo, retidão e competência.
    Mas era, sobretudo um telúrico. Apaixonado pela terra de seus ancestrais e que adotou como sua, planejava viver seus últimos anos de vida em Piancó. Lá adquiriu terras e montou uma fazenda, excelentemente estruturada e organizada para atividades agropecuárias. Não seria exagero afirmar-se que, tanto ou mais que os rendimentos que iria auferir das atividades rurais, queria o contacto com a terra e o convívio com os conterrâneos que recebia com prazer na sua Humaitá.
    Os projetos lhe foram frustrados. A morte repentinamente o levou, na plenitude do vigor intelectual. Preparava-se para disputar uma cadeira de deputado federal, com reais chances de eleição. Na câmara dos deputados, de certo somaria seu nome aos tantos paraibanos ilustres que brilharam no congresso Nacional.
    * * *
    A família Leite teve singular projeção na política paraibana. Nos tempos imperiais, o Dr. João Leite Ferreira, deputado provincial, casara-se com uma filha de Felizardo Toscano Brito, o comendador Felizardo, chefe inconteste do Partido Liberal, e, com a morte do sogro, assumiu o comando do partido. Pouco tempo permaneceu na direção partidária, pois morreu dois anos depois. A chefia dos Liberais paraibanos passou às mãos do seu cunhado Francisco de Paula Silva Primo, até o fim do regime monárquico.
    O advento da República não afetou o prestígio da família que se espraiara das origens piancoenses, e não apenas pelas comunas do vale do Piancó: Misericórdia, atual Itaporanga e Conceição. Dois filhos de Paula Primo, João Leite Ferreira Primo e Francisco de Paula e Silva Primo (Chico Paula), ambos deputados estaduais, comandaram, durante algum tempo, facções políticas em Pombal e Patos, respectivamente. Também em Teixeira os Leites atuaram, chegando à prefeitura. E, através do desembargador José Peregrino de Araújo, casado com uma sobrinha do Dr. João Leite Ferreira, galgaram o governo do estado, no início do século XX.
    O grande nome, porém, da família da primeira República foi o Dr. Felizardo Toscano Leite Ferreira. Médico formado na Bahia, fora, ainda bem moço, deputado provincial. Na República, chegou até Assembléia legislativa e, depois, à Câmara Federal. Sua chefia política não se limitava ao município de Piancó: estendia-se a grande parte do sertão paraibano. Os chefes locais reconheciam-lhe o comando maior. As nomeações para os cargos públicos nos diversos municípios sertanejos tinham que passar pela aprovação do chefe local e, depois, pela do Dr. Felizardo. Não foi caso único na Paraíba. Antes dele, o coronel Valdevino Lobo, chefe local em Catolé do Rocha exercera igual suserania na região norte do sertão paraibano. Depois dele, por algum tempo, o coronel José Pereira comandou, de Princesa, vários municípios do sul sertanejo.
    Fiel, como maior parte dos antigos liberais, ao comando estadual de Álvaro Machado e do monsenhor Walfredo Leal, o Dr. Felizardo e toda a família viu-se lançado na oposição a partir de 1915. Ser oposição naqueles tempos não significava apenas ficar as margens das decisões políticas e administrativas: era, sobretudo, não ter qualquer esperança de chegar a elas. As eleições eram manipuladas, a bico de pena, como se dizia. E, se acaso a facção oposicionista lograsse triunfar num pleito municipal, sua vitória não era reconhecida pelo poder estadual. Assim ocorreu até que João Pessoa assumiu o governo do Estado, em outubro de 1928. Decidido a renovar os costumes políticos e administrativos da Paraíba, declarou que, fossem quais fossem os resultados das eleições municipais que se iriam realizar em dezembro seguinte, a vontade das urnas seria respeitada. E foi o que aconteceu. A família Leite ganhou a eleição em Piancó e sua vitória foi reconhecida. Em reconhecimento pela atitude democrática, os familiares de Dr. Felizardo apoiaram a candidatura do Presidente da Paraíba à vice-Presidência da República em 1930. O mesmo aconteceu com a família Mariz em Sousa, de modo que nos dois importantes municípios sertanejos se formou frente única em torno da Aliança Liberal.
    Depois da morte de Dr. Felizardo Leite, o grande nome que surgiu foi o do já referido Salviano Leite Rolim. Ainda bem moço, foi alcançado, da prefeitura piancoense à Secretaria do Interior e Justiça do Estado. Era uma pasta que envolvia muitas atribuições – da segurança pública à assistência social, da educação à saúde, do relacionamento com os municípios à articulação política. Salviano houve-se bem em todos os assuntos afeitos à Secretaria. Transferiu-se depois para o Rio de Janeiro, então Capital federal, onde ocupou funções de alta relevância em órgão públicos e privados.
    Nunca, porém, se ausentou espiritualmente de Piancó, Ia regularmente a terra natal, acompanhava os problemas, tomava conhecimento de suas necessidades, e a tudo procurava encaminhar e solucionar, valendo-se de duas ligações e amizades na sede do governo do país. Privou da amizade de alguns Presidentes da República, nomeadamente Getúlio Vargas, em cujo Diário foi um dos poucos paraibanos nomeadamente mencionados, Juscelino Kubitschek e Ernesto Geisel. E, principalmente, participava ativamente da política local, nela influindo deci-sivamente, através de seu irmão uterino Antônio Leite Montenegro.
    E, como vimos, Salviano preparou o sobrinho Elzir para sucedê-lo. Com Elzir aconteceu uma coisa que faz lembrar João Pessoa. Tanto quanto o grande Presidente recebeu a indicação familiar para governar a terra de origem. Ambos realizaram administrações inovadoras e que serviram de paradigmas. E depois deles, o poder familiar esvaeceu-se. Depois de 1930, desapareceu o comando da família Pessoa no plano estadual. Em 1959, na eleição que escolheu o sucessor de Elzir em Piancó, o candidato familiar Mário Leite Ferreira, o “major Mário”, foi derrotado. Houve, ainda, uma sobrevida, com a posterior eleição para prefeito de Antonio Leite Montenegro, que não se reelegera deputado nem, posteriormente, em novas tentativas conseguiu voltar à Assembléia Legislativa. Um integrante do ramo de Conceição, Wilson Leite Braga, amigo pessoal de Elzir e que também o convocou para Secretário do Estado, chegou ao governo estadual. Eilzo Matos foi deputado estadual por mais uma vez. Contudo, sua base eleitoral era no município de Sousa, recebendo muitos poucos votos em Piancó. Mas, no “Velho Guerreiro”, como Piancó foi chamado, não há atualmente, sequer um vereador da família Leite. Repetiu-se o acontecimento com outras famílias políticas pa-raibanas, hoje apenas constantes das páginas de história.
    ***
    Recentemente, um jovem piancoense, Yurick de Azevedo Lacerda, publicou um livro sobre Elzir Matos, resgatando a figura e as realizações do Construtor de Piancó, como o denominou o autor, de vez que, como ele afirma “os restos mortais de quase todas as obras de Elzir foram abandonados pelo poder público”.
    Agora, Eilzo, com sua vasta e reconhecida capacidade intelectual – jornalista, poeta, ficcionista, historiador, biógrafo – somada ao amor fraternal, escreve sobre seu ilustre irmão. Bem o faz. O nome e os feitos dos que mostraram dignos e íntegros na vida pública e contribuíram marcantemente para o progresso de seu Estado e do seu Município, como Elzir Nogueira Matos merecem ser lembrados e suas memórias reverenciadas pelas novas gerações.


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