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  • Trois fois vingt ans

    29/05/2014

     Você conhece o exame da trena, possivelmente inventado pelo ministro José Múcio? Então saiba aqui como ele é feito. Quantos anos você acha que vai viver? 80 anos? Já chegou aos 60? Pois tome nas mãos uma trena de um metro, subtraia 60 cm de 80 cm e o que sobrar é o resto da vida que você tem – 20 cm. Não fique triste, deprimido ou algo assim. Antes, agradeça pelo tempo que você viveu, pelas coisas que você viu, pelas alegrias que sentiu, pelos relacionamentos que teve, por tudo que produziu e até por fatos tristes que, vistos pelo prisma natural, lhe deram maturidade e trouxeram experiência.

    A cada aniversário, sobretudo a partir dos cinquenta, costumamos experimentar invariavelmente o sentimento da nostalgia. Comigo é assim. Um aniversariante com o meu perfil tem tudo para explodir de alegria e ao mesmo tempo fazer uma viagem pelas estradas do passado. É como rebobinar um filme adormecido na alma e fustigar na lembrança os momentos mais marcantes da quase longa caminhada. Não se trata de uma nostalgia que venha a produzir sentimentos ruins, mas uma forma de revolver o calendário, olhar para o atrás que não volta e sentir o coração pulsar. Elejo aqui um extrato das lembranças simples.

    Deixei em Sousa a maior parte das imagens da minha infância e adolescência. Dei uma passada rápida por Patos, cruzei o Piauí, em Floriano, aportei em terras cearenses, o Crato, até chegar a Catolé do Rocha para ser aluno operário no colégio agrícola. Naqueles tempos de ruas descalçadas guardo os cenários de banhos de bica na chuva, de bolas de futebol de borracha ou meia, de cidades sem trânsito, de políticos honestos, do gado que pedia passagem pela rua principal, da caça às rolinhas com baleeira, das parteiras que atendiam à domicílio, das bodegas que vendiam fiado, do padre que mandava em todo mundo, do delegado respeitado, do juiz íntegro e do professor austero. 

    Ah, Sousa. Por onde anda Zé Noca, os irmãos Nêgo João e Biano, Anchieta Cezarino, Arimatéia de Manoel Galdino, Deda de Mestre Deoclécio, Rommel de Luiza Leôncio, Chaguinha de Felizardo Marchante, Geraldo de Seu Chico do Queijo e até as raparigas de Terto, que adornavam o bairro da Palha? Numa certa esquina ficava o bar de Zé Mendes, no final da grande avenida a Boate Luar, no centro tinha a feira livre, mais ao lado a de mangai, numa rua escondida a oficina de Valmir, e ainda: o bar de Firmo com seus pássaros cantantes, o Cine Moderno com seus filmes de Tarzan e depois de uma boa caminhada a barragem de Seu Azarias. Belos tempos, velhas e inapagáveis lembranças.

    Após, foi a vez de pisar no asfalto do Recife e ser apresentado a objetos estranhos: elevador, escada rolante, ônibus elétricos e arranha-céus. De assistir Romeu e Julieta no luxuoso Trianon, peças de Ariano Suassuna no Teatro do Parque e exposição de artes plásticas nas galerias de Olinda. De incursionar pela noite esquentando o sangue com o chope do Mustang, depois dançar no Clube Internacional ou na boate Ferro Velho, até encerrar a jornada etílica na Cantina Star (que galeto!). Foi na Capital pernambucana que entrei de cara no mundo literário.

    Encontrei-me com Jorge Amado, Graciliano Ramos, Machado de Assis, Raquel de Queiroz e outros consagrados escritores brasileiros, temperando com Shakespeare, André Gide, Kant, Hermann Hesse, Sócrates, Aristóteles e Platão, entre outros autores permitidos pela ditadura militar. Li o proibido Capital de Karl Marx clandestinamente, não entendi bulhufas, mas era leitura obrigatória no nosso meio: até quem não havia lido devia dizer que leu. Ou era um out side. Naquele tempo não era permitido pensar diferente, falar diferente e expressar uma arte, por exemplo, que fosse incompatível com o establishment dos generais.

    Há muitos outros momentos marcantes que vivi. Em todos fui muito feliz e mais feliz ainda nas dificuldades que superei e nas batalhas que venci. Já fiz de quase um tudo. Até chegar a Brasília, onde estou hoje, há muitas outras histórias para contar. Nestas linhas estão poucas cenas de um longa-metragem. Ou fragmentos de histórias completas. Em tempo: quer saber a minha idade? Basta traduzir o título acima – deste texto e do filme de Julie Gavras. 

    P.S.: republicado a pedido da saudade.


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