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  • 18.04.2015 - 16:54

    Documento mostra quem foram os últimos presos da ditadura


    Em abril de 1984, a ditadura agonizava. Desde o ano anterior, milhões de pessoas ocupavam as ruas do País em defesa de eleições para presidente da República, na histórica campanha das Diretas Já. Os sinais de deterioração do regime haviam se tornado evidentes na década de 1970, quando o presidente Ernesto Geisel (1974/79) iniciara a abertura política. A aprovação da Lei da Anistia, em 1979, permitira a soltura dos adversários presos e o retorno dos exilados ao Brasil. Também em decorrência do desgaste das Forças Armadas, os brasileiros puderam votar para governador em 1982. Irreversível, a redemocratização parecia um impeditivo a qualquer iniciativa autoritária por parte do governo fardado.

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    27 DE ABRIL DE 1984
    Estudantes correm da polícia e procuram refúgio na
    Universidade de Brasília. Alguns deles foram presos

    Mesmo moribunda, a ditadura atentou contra a liberdade dos brasileiros. Uma semana antes da votação da emenda constitucional Dante de Oliveira – que estabelecia a eleição direta para o Palácio do Planalto –, o presidente João Figueiredo (1979/85) decretou Medidas de Emergência, um ato de exceção que instituiu a censura aos meios de comunicação e proibiu manifestações no Distrito Federal e em dez municípios vizinhos. À frente da repressão, estava o general Newton Cruz, comandante militar do Planalto, conhecido pela truculência. Nos dias que antecederam a votação da emenda, marcada para 25 de abril, a população de Brasília reagiu com panelaços, carreatas e passeatas. Militares investiram contra os protestos e barreiras foram montadas nas estradas. Por desafiar a ordem de não se manifestar, cerca 60 de pessoas foram detidas na capital federal. Foram os últimos presos da ditadura militar.

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    A CAVALO
    O general Newton Cruz comandou as tropas que atacaram os manifestantes.
    Eles defendiam a eleição direta para presidente

    ISTOÉ obteve, com exclusividade, dois relatórios do Centro de Informações do Exército (CIE), hoje guardados pelo Arquivo Nacional, com os nomes dos presos. Os então deputados Aldo Arantes (PMDB-GO) e Jacques Dornellas (PDT-RJ) foram detidos, no dia 24, quando participavam de uma passeata na Esplanada dos Ministérios. No fim daquele dia, tropas da Polícia Militar haviam cercado o Congresso Nacional e centenas de pessoas foram proibidas de deixar a sede do Parlamento. À noite, depois de uma negociação que envolveu o deputado Ulysses Guimarães – presidente do PMDB e principal líder das Diretas Já – e o governo militar, os manifestantes sitiados puderam deixar o prédio em caminhada pela Esplanada dos Ministérios. Eles, então, avançaram pelo gramado, acompanhados por alguns deputados. Quando passaram em frente ao prédio do Ministério do Exército, foram atacados com bombas de gás lançadas por tropas comandadas pelo general Newton Cruz. Naquele momento, Arantes e Dornellas foram presos e levados para a sede do Comando. “O Dornelles chegou a sofrer alguma violência”, diz Aldo Arantes. Em nota, o general disse que acionou a polícia porque a passeata tinha o objetivo de “desmoralizar” o executor das medidas (ele mesmo) e o governo. Os dois deputados foram liberados poucas horas depois.

    Outro episódio importante ocorreu no fim da manhã do dia 27. A emenda Dante de Oliveira fora rejeitada pela Câmara na madrugada do dia anterior. Embora 298 deputados tenham sido favoráveis e apenas 65 contrários, eram necessários 320 votos para aprovar a mudança na Constituição. Em protesto contra o resultado, 800 estudantes fizeram uma passeata na avenida L2 Norte, nas proximidades da Universidade de Brasília (UnB). O CIE, a Polícia Federal e o Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA) acompanharam a movimentação desde a assembleia realizada no campus antes do protesto. No final da manifestação, quando os estudantes cantavam o Hino Nacional, militares à paisana e policiais federais armados lançaram bombas de gás lacrimogêneo e fizeram várias prisões.

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    Um dos primeiros presos foi o presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Acíldon de Mattos. “Três caras me seguraram e outro apontou uma pistola para minha cabeça”, afirmou Mattos à ISTOÉ. “Fui colocado em um fusca e ainda levei um soco no olho por não ter revelado meu nome.” Na confusão, os agentes da repressão agarraram uma deficiente física, Durcinea Crispim de Sousa, a Dulce, hoje falecida. “Acho que eles me prenderam porque pedi para que a soltassem”, diz Francisco José Coelho Saraiva, poeta e aluno de Letras que também foi preso naquele dia.

    Quase todas as pessoas levadas pela polícia foram soltas em menos de 24 horas. Mas Mattos, Saraiva e Zolacir Trindade, estudante da UnB, permaneceram uma semana encarcerados na Superintendência da Polícia Federal, em Brasília. “Ficamos três dias sem comunicação com o mundo exterior”, afirma Trindade. Durante os depoimentos, a maioria negou participação nas manifestações. Os três confirmaram a presença no protesto e acabaram indiciados com base na Lei de Segurança Nacional. O processo foi arquivado no ano seguinte.

    No total, a PF indiciou seis opositores ao regime por atos praticados durante as Medidas de Emergência. Três não foram presos por não terem sido encontrados. Um deles, Apolo Viana Barcellos, entrou na lista porque hospedou o presidente da UNE naqueles dias. Também tiveram de responder a processos os professores Antônio Ibañez Ruiz e Carlos Alberto Muller Torres por participação em uma assembleia. Ibañez presidia a Associação dos Docentes da UnB.

    Os perseguidos tinham perfil variado. Trindade e Saraiva participavam da movimentação política da UnB, mas não pertenciam a nenhum partido. Alguns, porém, eram personagens graúdos da luta contra a ditadura. Embora fosse filiado ao PMDB, Aldo Arantes era membro do Comitê Central do PCdoB, uma das principais organizações clandestinas perseguidas pelos militares. Ele foi um dos sobreviventes do episódio conhecido como “Chacina da Lapa”, em 1976. Militar cassado, Jacques Dornellas participou, em 1966, da tentativa de implantação da Guerrilha do Caparaó, na divisa entre Minas Gerais e Espírito Santo. O professor Carlos Alberto Torres teve longa trajetória de militância no também clandestino Partido Comunista Brasileiro (PCB). Entre 1970 e 1971, esteve preso por seis meses na Ilha das Flores, no Rio de Janeiro. Em 1984, ele era integrante da Comissão Executiva Nacional da organização.

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    A perseguição atingiu pessoas sem militância partidária que apenas defendiam a aprovação da emenda Dante. “Na manhã do dia 25, fui preso junto com meu irmão Mauro, um amigo e duas amigas porque estávamos com camiseta das Diretas Já e buzinávamos na W3 Sul”, lembra o jornalista Vinícius Dória, na época estudante universitário. Os cinco foram levados para a PF. Uma das detidas era menor de idade. A outra era filha de militar e, logo, as duas foram liberadas. Mas os rapazes passaram a noite em uma sala da superintendência da PF. “Ouvimos a votação em um rádio que eles tinham e transmitia a sessão da Câmara”, diz Dória. Foi um privilégio, pois as Medidas de Emergência proibiam os canais abertos de rádio e TV de transmitir a votação ao vivo.

    Apesar da derrota da emenda na Câmara, o civil Tancredo Neves foi escolhido, em janeiro de 1985, presidente da República por um colégio eleitoral. Tancredo ficou doente na véspera da posse, o vice José Sarney assumiu o Palácio do Planalto no dia 15 de março e o Brasil voltou à democracia. Em 1989, o País teve eleições diretas. Hoje, todos os que enfrentaram as Medidas de Emergência podem se orgulhar de pertencer a uma geração que derrubou a ditadura.
    Colaborou Alan Rodrigues.

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