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  • O País de São Saruê

    28/10/2014

    As serras azuis, paralelas, “nascem com o sol e se põem com ele” – formam cadeias –, costumam dizer orgulhosos os caçadores, os homens que andam a pé ou a cavalo, e ainda não usaram o automóvel para vencer grandes distâncias. De uma para outra distam mais de dez léguas. A que corre pelo sul, é a de Santa Catarina, de linha regular, altas elevações, grutas misteriosas, grandes maciços de granito. No inverno as cachoeiras rugem nos seus flancos e a mata – verde toda vida – levanta-se mais, cresce mais, redobra o vigor, guarda nas suas sombras e locas, todos os bichos que ainda vivem no sertão. Quando o Aracati sopra forte escutam-se estrondos. O vento explode nos penhascos. Serra quase virgem, onde minerais raros afloram derramados nas grupiaras, ou em filões gigantescos, que se entremostram em escarpas perigosas, delas os homens têm poucas histórias para contar, exceção faça-se de Pedro Gato, caçador manhoso, tocaieiro invencível. Pelo norte arrasta-se a Serra do Comissário, irregular e antiga, abaixa-se aqui, alteia-se acolá, parecendo até um cordão-de-serras e não uma formação única. Dominada pelos homens que se instalaram no seu topo, lá em cima existe uma verdura eterna, e “em se plantando tudo dá”, como ainda dizem os seus habitantes, servos dos Silveiras, dos Elias, dos Queiroga, encolhidos no frio das noites. Na seca as suas ilhargas verdejantes, transmudam-se em esqueléticas catingas de paus ressequidos. Os homens que moram nas alturas do “Comissário” pouco sabem do mundo, do sertão lá embaixo. No meio do calçamento em Pombal ou em Sousa, suam por todos os poros, sentem escurecimento de vista, chegam a desmaiar com o calor, excessivo para eles. Por isso evitam descer de suas moradas, e no sertão ondulado ente as duas serras, vive mesmo o povo de lá: os que nasceram e se criaram pelas várzeas e tabuleiros, pastorando gado, plantando milho, feijão, cana, algodão, fazendo vazantes na seca na represa dos açudes, até que passam a morar nas cidades, arruinados, doentes, inutilizados para o trabalho; alguns vieram de fora, de outros lugares, têm alma de sertanejo. Passando de arribada a pé, de trem, de carro, num relance entendem que devem parar a viagem, procurar moradia, viver no sertão. Nas vastidões entre as duas serras, no entorno, estiram-se estradas trepidantes, poeirentas e esburacadas pelos pneus dos jipes e caminhões, pelas patas dos animais, rasgadas pelas águas das chuvas. Por ali correm no inverno os rios do Peixe, Piranhas e Piancó, e alguns riachos valentes de águas barrentas, de férteis baixios nas suas ribanceiras, onde a agricultura rende mais, plantam-se os sítios, reserva-se um refrigério para o gado na seca. As cidades, vilas e povoados, as fazendas, espalham-se no chão ora em negro aluvião, piçarra ou massapé, ora em elevações pedregosas, rebrilhando grãos de malacachetas e quartzo, dominadas todas pelo desenho das serras distantes, misteriosas, atraindo imigrantes. Aglomeram-se em garimpos, pessoas ambiciosas em busca de fortuna. Obliquamente aos dois grandes maciços, erguem-se formações elevadas com várias denominações: aqui Serra do Formigueiro, acolá Serra dos Macacos, adiante Serra das Angélicas, de extensão e altura inferiores. “Serrinha caxexa”, comenta Pedro Gato quando Horácio Vaqueiro descreve-lhes a natureza agreste, os grotões profundos varejados por ele no encalço de gado escondido nas malhadas, nos bordos de olhos dágua. Um silêncio de morte quebra a voz dos ermos. E a gente? E o mundo em redor? A vida começa a chegar mudando os ciclos do lugar. Vertentes, correntes, bolandeiras, fábricas, engenhos de pau, sindicatos de pobres e também de ricos espertos. Médicos, bodegueiros, marchantes, funcionários públicos. Cercas de vara e cercas de arame, currais de mourões travejados, gado ferrado, vacinado, criação miúda de canga. Questões de terra falam em datas e sesmarias, nas petições dos bacharéis. Poetas e versejadores, pistoleiros, prefeitos e deputados, aviões, os governadores, planos para construir, para demolir. Corta a faca o fio da teia que a vida teceu no pingo do meio dia, nas noites de tempestades. Os santos estrangeiros e os beatos do lugar, conhecidos e respeitados, são venerados em procissões e romarias. Sertão de 1710 nas igrejas de Sousa, de Piancó e de Pombal, no Jardim do Rio do Peixe, no Velho Arraial do Piranhas e Piancó, nas terras foreiras do patrimônio dos santos, na proteção distributiva das indulgências plenárias para a salvação das almas."


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