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  • Gregório de Matos e Augusto dos Anjos

    03/01/2018

     No “Boca do Inferno”, drama histórico da cearense Ana Miranda, colocado pelos teóricos e críticos da literatura entre os cem melhores romances de língua portuguesa no último século − descobri e vivenciei num processo diria catártico, o ambiente, o mundo barroco-colonial da Baía de Gregório de Matos e do Padre Vieira, de alcaides, governadores, bispos e jesuítas, e do populacho anônimo que percorria os becos imundos da Salvador colonial. Movidos pela inveja e pela intriga, os personagens, interagem, dominam a cena e a trama se desenlaça. Mas fiquei na incerteza sobre realidade e imaginação, vistos em comentadores da história, e contidas na narrativa romanesca. Eis a força da literatura de ficção, quando manejada pela percepção dos mestres da narrativa, realizando a tese luckácsiana da integração da obra de arte na teoria do conhecimento, pela recriação do real, do típico na sociedade.
    No romance “A Última Quimera” em que Ana Miranda biografa Augusto dos Anjos, a genial cearense nos oferece material incomparavelmente curioso, revela circunstâncias que decidiram sobre a sua vida, quiçá deixadas de lado ou ignoradas pelos paraibanos. Valioso contributo para aferição de fatos e costumes da nossa impávida terra-mãe naquele início do século XX.
    Pouco sei da Paraíba no tempo de Augusto dos Anjos. Somente alguma coisa da vida econômica e política que envolvia as oligarquias, as famílias que desfrutavam o prestigio com a parentela e os compadres.
    Sobre a belle époque na Parahyba, tenho informações corriqueiras e genéricas sobre o mundo dos costumes de então, a crônica dos “bacharéis caça-dotes”. E sobre Augusto dos Anjos o cidadão, o poeta? Quase nada. Alguns versos das “Cismas do Destino”, dos “Versos Íntimos”, algumas alusões de eruditos e contemporâneos. 
    A verdade é que os paraibanos que o conheciam, não quiseram ou não puderam ajudá-lo. Um recusou-se fazê-lo. Reduziram-no à modesta condição de exilado no Rio de Janeiro, anônimo vendedor de apólices de seguro-de-vida, de porta em porta, “carregando uma maleta de couro na mão”, na busca do pretendido cliente, recurvando a espinha e pendendo a cabeça para trás, para ver melhor quando pessoas assomavam à janela dos sobrados. Parecia um caipira apalermado em roupa citadina.
    Como podia tão inominável cena se oferecer aos transeuntes, envolvendo tal personalidade, ante a indiferença geral? Transcrevo de Ana Miranda a dolorosa observação abaixo:
    “Augusto morreu sem realizar nem mesmo o seu mais trivial desejo, de conseguir uma colocação na capital, que desse a si e a sua família alguma segurança. Como pode ter acontecido isso a uma pessoa como Augusto? Como pode um homem criado pela família com toda atenção e cuidados, bem preparado, nota máxima nos estudos, com fama de o mais sabido, o mais inteligente, o mais erudito, o mais estudioso, o melhor tradutor de grego, o melhor declinador de latim, o melhor conjugador de verbos franceses, o melhor em gramática, história, geografia, português, ciências, o de mais farto vocabulário, mais sólida argumentação, imbatível em qualquer exegese, o que leu mais livros, o maior humanista, o de maior lucidez, de mais agradável retórica, mais brilhante eloqüência, grande palestrador, notável defensor de idéias nos jornais, smartíssimo, sabedor de teorias as mais complexas, ele mesmo teórico, que sabia citar os mais remotos autores, além dos menos remotos, casado com mulher decente, canônica, um homem limpo, cheiroso, cabelos lisos, pele branca, com todos os dentes etc e tal ter uma vida tão melancólica e sem oportunidades? Nem mesmo um emprego para alfabetizar filhos de proletários, quando qualquer professora que conhece um pouco mais que o ABC tem uma vaga a sua espera na escola.”
    O destino inexorável teceu a sua teia, alcançando um homem cheio de esperança, como um urubu pousando em sua sorte. Ele mesmo o confessou num dos seus sonetos, sentindo frustradas as expectativas de uma vida digna para a família, sempre viva nas suas reflexões mais íntimas.
    Relata o seu coetâneo José Américo de Almeida: “que (ele) levava uma vida regular, como homem de sua casa, de sua família, de suas obrigações... veio a nossa camaradagem ele já formado... estirávamos as pernas da Igreja da Misericórdia à Praça do Palácio... de paletó escuro e calça listrada, os sapatos envernizados, não era um relaxado no vestir... o meio conspirou contra sua estabilidade emocional; “ refere ainda revelações de Humberto Nóbrega sobre a fortuna desfeita, a alienação do Pau d’Árco “sacrificado por uma hipoteca vencida”. Completa, a dura pena do romancista José Lins do Rego, no realismo de sua revelação, a narrativa da ruína familiar, o patrimônio desfeito, e a humilhação final do poeta: “Só não levaram a santa da capela”. 
    O que lhe restou dessa vida desgarrada? 
    Pelo que sei apenas uma obra poética consagrada, insuperável entre outras; e da vida entre os homens, muitas dores. Recorro a conceitos alheios. “Poeta moderno e vivo”, acentua Otto Maria Carpeaux, e o insuperável Álvaro Lins assegura: “Com espírito filosófico e científico, e com a sua singularidade pessoal, Augusto dos Anjos tornou-se o poeta brasileiro cujo pensamento atingiu mais altura, densidade e consciência.”
    Pouco mais conheci em leituras e apreciações biobibliográficas ocasionais. A imagem pessoal que me restou mostra o homem magro de terno preto, de chapéu preto, de bengala, um injustiçado que “nunca promoveu uma desordem , nunca deu um escândalo. Não jogava e a bebida não lhe dava animação, não lhe punha a gota de fogo no sangue”, como completa o autor de “A Bagaceira”. 
    E nunca conseguiu um emprego nos lugares que escolheu para viver: a capital do seu Estado natal e o Rio de Janeiro. A colocação em Leopoldina, arranjada através de um concunhado, socorreu-o quando todos os conterrâneos e confrades da vida literária o ignoravam. Só isto, e pouco mais que escreveram Humberto Nóbrega e Horácio de Almeida, sobre a perda de sua fortuna patrimonial e as razões de sua angústia. Um urubu verdadeiramente pousou ns sua sorte.
    Confesso que sou leitor um tanto desatento, muitas vezes não chego ao fundo das questões, como deveria. Em relação ao poeta da “sombra magra.”, impressionam a indiferença dos coetâneos, certamente ameaçados pela evidente superioridade intelectual que o destacaria entre todos. E a recusa em apoiá-lo, nas suas legítimas pretensões, ajudá-lo em face de impasses que enfrentou e marcaram a sua vida. 
    Boa sorte contar com as pesquisas, a realização da romancista cearense que deslindará algo mais. o que resta por trás dos fatos. E o faz para reconstituição da verdade histórica, atenta à lição do advogado romano Quintiliano que sobre os acontecimentos indagava: Quis, quid, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando? É o que procuramos todos conhecer.
    Eilzo Matos. 15 de outubro de 2007


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