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  • Capão do mato - o mundo morto - o mundo vivo

    16/05/2017

     Temos duas vidas: a nossa e a dos outros, para sentir, para viver. Saramago o confirma no seu romance “O Homem Duplicado”. Vivência, experiência, ciência. Ali estava na frente da casa, a ilha vegetal, o capão de mato.

    Surgiu como uma epígrafe, num tempo de minha vida, um símile extravagante, quando já avançado na idade me mudei da cidade para a fazenda: eu um citadino, menino de rua, de circo, de grupo escolar, de igreja, de biblioteca pública, um estranho no lugar.

     

    Naquele tempo a minha presença era ocasional, mera vilegiatura. Não era voltada para o trabalho e o dinheiro - motor das um danças sociais -, de que se ocupavam os proprietários de terra e os seus confinados moradores.

    Os percalços da vida me envolveram ferozmente. Lembro cons-tatações e crenças lidas no “Fausto” de Goethe, que falavam da maravilha maior entre as do céu e da terra: a liberdade dada ao homem para escolher entre o bem e mal. Comigo aconteceu. Nas noites de tempestades violentas o céu iluminado pelos relâmpagos, a casa sacudida pelo vento, o estrondear dos trovões, eu pedia proteção aos santos em orações, encolhido na rede, enrolado nos lençóis. Um medo imemorial, impossível de evitar me dominava.

     

    Renegava a existência no terreiro da frente da casa, daquele arre-medo de mata, na verdade um aglomerado de árvores e de rochas negras e lavradas de manchas e pintas como em alguns animais, aves e peixes da região, que encontrava nas travessias e em caçadas e pescarias. Mostravam-se como antevisões de mau augúrio.

    A crônica do capão de mato ali perto, variava no fuxico de encontros secretos, traições-amorosas, animais furtados escondidos, tocaias, macum- bas, despachos. Aparições de vultos envolvidos em tragédias conhecidas no lugar. As crenças no meio circundante, na vizinhança levavam-me igual-mente ao medo atávico.
    A esta altura da vida, a leitura alimentava e abria os portais das trevas infernais, e as sombras dos mortos vagavam assumindo formas terríveis e ameaçadoras, ressentidas.

     

    A crônica local, a história e memória de fatos conhecidos, fruto dos costumes transformados em lenda e em mito. Vultos assombrosos, mutações e configurações sem marca de tempo e lugar, criavam enredos, entre o sonho e a verdade.

     

    O trotar duro do chouto do burro na estrada chamou minha atenção. Certamente o negro Zé Bululu, na sua passagem semanal em paradas, cafezinho e animadas conversas entabulando compra, venda e troca de animais e gado. Eu conhecia os fatos e costumes do lugar.

     


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