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  • A sanha capitalista pelo lucro

    24/06/2015

     Expulsos da terra onde construíam suas vidas, submetidos à violência e brutalidade do modo capitalista de exploração da força do trabalhador - desprezadas até habilidades especiais de alguns -, jogados todos na vala comum do subemprego, uma família inteira de três gerações reunidas, migra em busca de um serviço qualquer remunerado, para sobreviver. Ao fim de inauditos sofrimentos, pervagando vilas e cidades, entregues à própria sorte, a família é reduzida pela morte de alguns que não suportaram os trancos da triste e forçada expedição. Vítima de falso envolvimento em ilícito criminal, um dentre os membros restantes vê-se obrigado a fugir, decidindo tornar-se um militante dos direitos sociais. 

    Este o tema, o enredo da saga das pessoas pobres no oeste norte-americano nas primeiras décadas do século passado, mostrada por John Steinbeck com poderosa força narrativa no seu romance épico “As Vinhas da Ira”. Seguem todos num caminhão sucateado, pessoas tristes e trastes velhos mal acomodados no espaço pequeno e desconfortável. Muitas barreiras, muita polícia na estrada, não os protegem, pelo contrário, os atormenta com investigações incriminatórias, incabíveis. Até guardas privados ditam ordens, rumos a seguir. De um lado o empregador, do outro o empregado. Chega a hora final, da perda da identidade, da memória. “Éramos muitos, trabalhávamos, vivíamos, éramos uma família... agora o que parecemos, o que nos resta, o que somos?” indagam-se.
    * * *
    No Brasil, fato semelhante, diferente somente nas nuances roma-nescas e próprias do modelo de sociedade onde ocorreu, no seu substrato, no âmago da questão, se repete com uma família reduzida a uma única geração que ignorava sua origem, que restara reunida, numa fuga dolorosa da morte pela fome, e sem um destino qualquer projetado. Seguiam guiados pelas estrelas que ditavam mensagens sobre o tempo. Somente a busca pela sobrevivência arrastava Fabiano, a mulher, os filhos e a cachorra Baleia pela estrada pedregosa e poeirenta. Sobrevivente, quando passara o pior, o sertanejo Fabiano se encostara como morador numa fazenda. Trabalhou. Matou um porco de chiqueiro e levou a carne para vender na rua. Precisões na casa. Precisão de panos e chinelos. Graciliano Ramos com frases curtas e palavras secas, retrata um drama universal transposto para a catinga sertaneja. 
    De cócoras, na feira, a carne no chão em cima do saco de estopa Fabiano espera fregueses. Aborda-o um homem carrancudo, com um talão na mão. Fabiano desvia o olhar e é cotucado com o bico da bota do homem. Olha zangado para o intruso e permanece calado. O fiscal fala alto, cobra o imposto devido para negociar. Fabiano não entende.
    O homem se mostra importante, se balança nas pernas e com o lápis em riste explica que todos devem ao governo uma parte de suas posses, e devem pagar a dívida quando desfrutam tais bens. Fabiano achou um exagero e uma injustiça tal imposição. Raciocina. Então ele comprou um bacorinho que a mulher e os filhos criaram e engordaram, tudo a sua própria custa, e o governo “sem-vê-de-quê”, tem uma parte? Difícil mesmo de entender.
    Fabiano pouco sabia de governo, e o que lograra conhecer não lhe agradara: o “soldado amarelo” que o levara para um jogo e o tapeou. Quando quis se retirar o soldado barrou-lhe os passos, aplicou-lhe no lom-bo pancadas com a folha do facão. Quis reagir, foi dominado e jogado no xadrez. Culpado. Criminoso. Ali estava com as carnes doloridas.
    O que fez Fabiano de sua vida e de sua família? Talvez o seu nome tenha sido trocado por um apelido sonoro, indicativo naquele tempo de poder e ação do cangaço: Ventania, Bala Seca, Moita Braba, Tempestade, Corisco, Serra Negra, Trovão, Patativa e Pilão... ou atraído para cidade grande e os filhos se tornaram “flanelinhas”, abandonaram a casa, a mulher morreu tísica, a cachorra Baleia... 
    * * *
    Pierre-Joseph Proudhon publicou um livro em Paris, em 1840, cujo título continha a indagação: “O que é a Propriedade?” A resposta foi dada por ele mesmo: “A Propriedade é um roubo”. Embora a obra o qualificasse e credenciasse como pensador, sociólogo, filósofo, economista, foi levado à justiça para se explicar. “A propriedade é um roubo”. Confirmou. Foi absolvido
    Mas tudo que é sólido desmancha no ar... 
    Finalizo com versos meus que guardam traços de um mito da sociedade, o trabalhador.

    ODE AO TRABALHADOR

    Joga sempre a mão. O trabalho
    Áspero só na imaginação 
    Dos estetas, completa a tese,
    Veste o xadrez da condenação.

    Quase não fala, expele a voz
    Rouca, rompendo intermitente o espaço.
    Fede e exala o odor da doença,
    E julgam-no apenas um palhaço.

    Guarda inteira a consciência.
    Reservaram-lhe da vida o
    Cansaço da lida, quanto cabe
    Ao homem por suportál-o.

    Tem os dias e as noites tem
    Em duros códigos limitados.
    Ergue os braços e brada impoluto
    O sinal dos punhos cerrados.


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