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  • O jogador apoucado

    19/02/2015

     VÁ DENTRO ! − comandou a voz do parceiro. A irritação de Raimundo aumentava. Estava perdendo. Desgostava-o aquela aparência de superioridade do outro. Atrapalhava-se algumas vezes com o jogo cheio de alternativas. Agora estava armado, com um par de noves e um dez encostado. Bateria por várias cartas: oito, nove, valete. Possuiu-o súbita angústia. Estendeu o braço, chorou a carta segurando-a com força, dobrando a ponta. Outro nove de copas, duplicava. Tremeu, olhou demoradamente para o baralho em leque na sua mão esquerda. Os parceiros perceberam a sua indecisão, o seu desapontamento. Mostrou-se resoluto e jogou a carta na mesa. − Bati! gritou o companheiro do seu lado direito, deitando o jogo na toalha, puxando os caroços de feijão que serviam de fichas. − Mão gorda! completou rapidamente, abrindo um sorriso que o exasperava ainda mais. Realmente aquela parada lhe cobriria o prejuízo, avaliou Raimundo. Mexeu-se na cadeira, sentiu-se desconfortável no assento duro e lembrou-se da mulher. Não teve coragem de encarar os jogadores, baixou os olhos. Ao chegar comprara fichas, entregando o dinheiro com delicadeza, sem jogá-lo em cima da mesa como outros faziam, guardara-as no bolso da camisa. Evitava colocar o feijão em cima da mesa, como faziam parceiros conhecidos, porque não conseguia esconder a inquietação diante dos olhares quando as suas reservas minguavam. − Café para todo mundo! − ordenou o dono da casa. Quando a empregada acercava-se com a bandeja, Raimundo antecipou-se, segurou a xícara com firmeza. Não cederia a vez, humilhado, diminuído como nos contratos de trabalho na fazenda. No jogo todos eram iguais. A mulher não valorizava este detalhe, pensava só no dinheiro, nos dias de suor derramado, nas necessidades da família. Ele amava a mulher, meiga, branca. Ela tinha os seus motivos. Para casar tivera de raptar a moça, recusado que fora porque era negro. Resistia a apelos. Vivia da roça, tinha a força nos braços para sustentar uma filha de branco, e, para passar como pobre, ganhava o suficiente, assim tivesse trabalho, costumava dizer com orgulho. Fale quem vai jogar intimou o parceiro ao acabar de dar as cartas, arrancando-o dos seus pensamentos. Indeciso Raimundo acendeu um cigarro. Gostava do jogo na casa do patrão. Após o banho no açude ensaiava troças, sozinho na estrada. Diante da mesa composta, na sala mobiliada, olhava para os grandes quadros na parede, esfriava. Passo respondeu cauteloso e passeou o olhar pela mesa, estimando em gêneros alimentícios os montinhos de fichas na frente dos jogadores. Olhar agudo, o jogo medido, compassado, o patrão estava ajudado pela sorte. Esvaziava-se o bolso de Raimundo. O baralho haveria de mudar, ele esperava e fazia planos, inventava surpresas para a mulher. Aquela parada que perdera armado num par de damas daria para comprar até tecidos, roupinhas para os meninos. A da seqüência garantiria o açúcar para a semana. − O negro está arisco, só vai pronto! − alguém falou para encabular Raimundo. Gostava de jogar, especialmente naquela mesa, que o ambiente os tornava íntimos. Fiscalizava como nas outras, os pedidos de cartas, os descartes, impunha a observação de regras estabelecidas. Diferente do seu mundo de trabalhador da roça, a enxada pesando, preso como um animal jungido para o sacrifício. Revidou a pilhéria erguendo a cabeça, o olhar duro: − Peru calado ganha um cruzado! O meu dinheiro custa o meu suor − respondeu usando a linguagem própria de jogatinas, ríspido, numa advertência. A sorte não o protegia, aproximava-se agora de Manoel Preto. Odiava aquele parceiro sempre protegido pela sorte, mesmo negro como ele. Foi-se a última ficha. Sem dinheiro, saiu para o alpendre e evitou conversar. Demorou-se entregue a pensamentos tristes, olhando para o céu muito azul, para os cercados na frente da casa, que lhe consumiram dias de trabalho. Voltou para a sala onde carteavam, pisando macio para não ser notado, para não escorregar no cimento liso. Dirigiu-se para a sala de jantar e foi ao pote para beber água. Uma intimidade. Sobre a mesa estava a garrafa térmica com o café. Pensou em encher uma xícara, beber o líquido gostoso olhando à distância os jogadores na sala da frente. Não se atreveu. Deveria pedir, se quisesse. Que fazer? Peruar ou sair para casa. Não podia voltar para o jogo. Não tinha mais dinheiro e não ousava pedir emprestado, receava uma negativa. Na cozinha conversavam as mulheres da casa e da vizinhança. Não escutava a voz da esposa, retraída, que pouco freqüentava a casa grande. “Apoucamento”, pensou Raimundo."


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