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Antônio Vital do Rego - in memoriam
02/01/2015
(“Aonde foi, ocupou todos os espaços. E aonde não pôde ir, sua imagem humana se projetou; sua voz vigorosa se fez ouvir; sua ação benfazeja promoveu o bem-estar de muitos. Cumpriu bem a sua missão superior, quer onde esteve, quer aonde chegou com sua mensagem de tranqüilidade e do bem-fazer”.Evaldo Gonçalves de Queiroz). Começo a minha breve e diria curiosa memória de Vital do Rego, com esta epígrafe, acima, retirada de um texto do imortal Evaldo Gonçalves, colunista do blog “Vitrine do Cariri”, que retrata de forma definitiva o indelével vulto campinense. Era a Década Cinqüenta do século passado, no Recife, aonde fora mandado para estudar. Nos meus passeios solitários pelo Bairro da Boa Vista onde funcionavam pensões e morava a maioria dos estudantes que vinham dos estados vizinhos, as ruas vazias de automóveis, recolhia-me em meditações. Naquele tempo se podia caminhar horas inteiras pela Mauricéia, sem receio de qualquer agressão. Reencontrava, então, episódios da história literária e política do país. Como não? Freqüentaram aquelas avenidas e praças vultos notáveis. A juventude cultuava sua memória: Castro Alves, Fagundes Varela, o Leão Coroado, Borges da Fonseca, Maciel Pinheiro, Augusto dos Anjos, José Lins do Rego, José Américo, Ariano Suassuna... A minha Paraíba dominava a cena. Em ruínas, abandonado, resistia como marco histórico o “castelo” dos Pessoa de Queiroz. Marcado por buracos de balas, portas e janelas espatifadas, paredes ene-grecidas pela fumaça da guerra, ocupava quase um quarteirão, no começo da avenida Manoel Borba. Olhava para o Colégio Salesiano e para a Praça Chora Menino. Protegido por pesadas grades de ferro trabalhado, firmado em pilares com insólitos capitéis, mostrava-se o edifício no heroísmo trágico de sua legendária resistência. A arquitetura art-nouveau com torres e janelas esguias, quase góticas, salões e aposentos nos três andares da construção, despertava curiosidade. Ali também estava escrita a história da Paraíba. A Revolução de Trinta o comprova. Detive-me inúmeras vezes apreciando o edifício, a paisagem, impregnando-me de sentimentos indefinidos e nostálgicos, trazidos pela ruína urbana e memorial, que os meus familiares rela-tavam, posso dizer. Pois nesse Recife, de tanta tradição desaparecida, de tantas memórias gastas, conheci o conterrâneo recentemente falecido, de quem me tornei amigo, o brilhante advogado, o tribuno e político Antonio Vital do Rego. * * * Primeiro foi na Faculdade de Direito. Quando cheguei ele já estava lá: eu de calção de banho, “fera”, contrafeito; ele “veterano” em posição de comando, vestido elegantemente, compenetrado supervisionando a preparação do famoso e tradicional “trote” que era aplicado aos que concluíam as provas do exame vestibular. Seria mais um extenso, fascinante e mágico cortejo pelas ruas centrais: Hospício, Imperatriz, Nova, Aurora... com fantasias, figurações e dísticos que divulgavam a crítica política e social da época, ao som de fanfarras, bombas, muita gritaria e pancadaria. Acon-tecimento esperado e prestigiado, aplaudido pelo povo que aprovava a crítica, e pela elite social orgulhosa, representada pelos seus filhos que ali estavam em maioria. Depois aconteceu num ambiente popular de bebida e merenda, como se falava. No apinhado desconfortável ele apareceu vestido como um galã de cinema, jovem, bem penteado, com um livro grosso na mão. Procurava o primo Virgínius Figueiredo da Gama e Melo jornalista político e crítico literário, habituê ali, do papo e da cachaça com as infalíveis “frutas da estação” para tira gosto. Cumpria Vital do Rego um duplo dever de urbanidade: era acadêmico de direito e neto do coronel Chico Heráclio de Limoeiro. Isto valia muito naquele tempo, e criava deveres. Virgínius afável e sorridente, sempre ouvido, introduzia o parente: “Este é Tonito meu primo, acadêmi-co de direito e neto de Chico Heráclio”. Todos se voltavam surpresos. A fama do poder e prestígio dos coronéis tornara-se uma verdade indiscutível para os pernambucanos. Eles é que continuavam casando e batizando nos grotões. Os mais notórios eram Chico Herálcio, em Limoeiro, Vere-mundo Soares, em Salgueiro, Chico Romão, em Exu, Zé Abílio, em Bom Conselho de Papacaça, e o Coronel Quelé, patriarca dos Coelho em Petrolina e adjacências. Corria a versão de um telegrama do coronel José Abílio, em resposta ao go-vernador Agamenon Mangalhães, que lhe advertia sobre a condenação pela opinião pública de certos atos discricionários praticados por ele no seu município. Leiam o texto. “Governador Agamenon Magalhães. Palácio das Princesas. Recife. Em resposta à sua carta informo que continuará a contar com o amigo de sempre. Importante para o governo é o apoio dos coronéis que é forte e tem sustança. A opinião pública é um cheque sem fundo. Saudações. José Abílio”. * * * Localizado na rua detrás do edifício do Jornal do Comércio que olhava para a Biblioteca Pública, a joalheria Krause, ao lado do famosíssimo Café Lafayete na Rua do Imperador, o bar “A Portuguesa” exibia mesas de pés de ferro negro e pedras de mármore branco, cadeiras também de ferro e assento desconfortável. Uma nobre- za exagerada do tempo. Perpassava no pequeno salão um cheiro brando e caracterís- tico de latrina e lodo nos dias frios e chuvosos. Ninguém reclamava. A proximidade da Pracinha do Diário de Pernambuco, do Tribunal de Justiça, do Teatro Santa Isabel, do Palácio das Princesas, o seu nome, ofereciam-lhe freqüentadores habituais. Recebia clientes que procuravam a caninha, a cerveja, o café pingado com inhame e pão com manteiga, faziam a sua fezinha no jogo do bicho. Entre outros, encontravam-se carregadores de frete, comerciantes, comerciários, funcionários públicos, repórteres, literatos, jornalistas de coluna assinada, artistas e políticos atraídos pela notoriedade que conquistara o ponto de encontro, na ubiqüidade de sua localização. O garçom de nome Espedito, baixinho e expedito no atendimento da freguesia, tornava-se amigo de alguns freqüentadores como o introvertido teatrólogo premiado Aristóteles Soares e o bacharel Xavier Maranhão, quixotesco na figura alta, magra, teso, teatral nos gestos, extremado no partidarismo político. O bicheiro Abelardo insinuava-se na interpretação de sonhos e decifração de palpites, travava inauditas discussões com o letrado professor de Direito, catedrático Samuel McDowell da família do barão de Camaragibe, educado na Inglaterra, tradutor dos sonetos de Shakespeare, viciado na bebida, jogador compulsivo, inveterado. MacDowell furtava jóias da família para empenhar ou vender, pagar os pules das apostas. Carlito, cinqüentão de cabelos louros finos e brilhantes colados na cabeça, surrado terno de linho cinza, de gravata, bem barbeado, bochechas flácidas, os olhos azuis protegidos por delicados óculos, não conseguia esconder a pobreza, mas assu-mia postura de conselheiro, tocado pela sorte, olhado com admiração. Era assessor imediato do mestre e da tavolagem. Feita a aposta, ao chegar o resultado, Mac Dowell certificava-se da perda, mas Carlito confortava: “Perdemos por um dente de roda (roleta), somente”. * * * Quando concluí o meu curso, Vital já era deputado e genro do governador do Estado. Virginius regressara à Paraíba, e nos nossos encontros, quando eu passava de viagem para o sertão, entre uma cerveja e outra, entrosamos um projeto, para Vital contribuir com um “pro-labore”, para ajudar nas nossas confraternizações. Nada político. Franca amizade, apenas. Afinal para que se governa um Estado? Muitos pensavam assim. Guardo carta de próprio punho de Virginius, comunicando-me o atendimento ao seu pedido. O “pro-labore” fora autorizado, coisa de um salário, sem obrigação de freqüência e presença no expediente. Não me lembro quanto tempo durou a franquia, nem quantas “grades” de Brahma e Artártica consumimos na Bambu e na Canadá. Quanto a projetos, inúmeros. Mas que foi providencial a ajuda foi. Ali conheci o impoluto Elzo Franca, o suave Elcir Dias, os não biqueiros Paulo Melo e Marcos Tavares, o inesquecível Valdemar Duarte da UBE, Balduino Lélis, e bota gente boa nisso. Pois do fundo desse sertão, compungido com a notícia do falecimento do eminente conterrâneo, mando as minhas condolências para a família do ilustre desaparecido. ....Sertão, fev/2010....."
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