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  • Doutor Grilo

    24/11/2016

    A natureza fez Doutor Grilo fora dos padrões anatômicos. Normalmente quando o sujeito é magro é também alto, como eu. Ele era baixinho e magérrimo. Um graveto. Para completar, era danado de feio e parecia ter nascido antes do tempo. Porém, em compensação, Deus deu ao meu amigo e boêmio um vozeirão de barítono.
    Na ausência de instrumentos musicais, Doutor Grilo deslizava uma caixa de fósforo sobre a mesa do bar e cantava afinado as músicas de seu repertório. Uma delas, talvez a preferida, era de Waldick Soriano, que começava assim: Sua beleza com o tempo vai embora/Em vez de rir você virá chorar comigo...
    Era justamente a voz que dava o sustento a Doutor Grilo. Os lojistas (principalmente Rosil Camilo, da rua Cel. José Gomes de Sá) costumavam contratá-lo para anunciar, na calçada e pelo microfone, as mercadorias que estavam no "queima". Quando a frequência de clientes esfriava, o locutor abandonava os anúncios e engatava uma canção, atraindo a atenção de quantos passassem por ali. Calçada cheia, voltava aos anúncios. E ficava nesse vai e vem.
    Nunca vi Doutor Grilo com uma namorada ou algo do tipo. Estava sempre só. Parecia que a bebida que consumia insaciavelmente preenchia todos os seus vazios. Certa vez eu estava bebendo com ele no Chabocão e, depois embalar algumas canções, disse:
    - Doutor Inaldo, eu tenho um amor secreto, mas o nome dela eu vou levar para o túmulo.
    Dito isto, começou a cantar A Pobreza (Leno e Lilian): Todo mundo tem/Um amor na vida/E por ele tudo é capaz/Eu tenho uma paixão/Que é proibida/Só porque sou pobre demais...
    Antes de terminar, lágrimas começaram a escorrer pela face. Ele disfarçou e foi no banheiro. Não precisei disfarçar: derramei minhas lágrimas na ausência dele. Chorei em homenagem à tristeza do amigo pobre e que levaria para o túmulo o segredo de uma paixão impossível. A bebida, claro, ajudou.


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